Triathlon: Fragmentos ou Unidade?
- Cartografias Subjetivas
- 3 de jun. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 8 de jun. de 2020
Mãe de três, ou seriam 27? Não! São só três, com cara de 72; dona de casa ativista: “mãe, cadê o meu...?” “mãe, eu quero!” “mãe, eu NÃO quero!”; empresária num país em que te consideram folgada ou dondoca; ligada no 220, tem quem diga que é sintoma e não escolha, e apaixonada por triathlon, ou pelo que acredito que seja o triathlon: três esportes em um só? Ou um só que parecem três? Fragmentos ou unidade?

Naquele começo, com o pensamento ainda em pedacinhos eu via o triathlon como três esportes em um só: natação, bike e corrida – na ordem correta -, mas aqui no meu relato, começarei pela corrida, que foi minha “porta de entrada” para o triathlon. Ah, corrida!!! Você é a mentora do esporte na minha vida, minha válvula de escape, minha terapia, meu momento comigo mesma, no silêncio das minhas palavras, no vazio das minhas emoções; sinto que estou voando, que estou em transe... primeira modalidade tiro de letra – pelo menos é o que eu penso.
Vamos para a segunda etapa: a bike. A bicicleta parece algo mais lúdico, com medos, ansiedades,
excitações; afinal, pedalo em um “algo” tão familiar e ao mesmo tempo tão diferente, aprendo a calçar a sapatilha - caio da bike com ela parada - pedalo clipada - quase deitada -, mundo novo, amigos novos. É, estou gostando desse “tal de triathlon”.
Para ser uma triatleta agora, só falta nadar, só falta aquela minha velha conhecida natação, de quando ainda pequena ia para as aulas do tio João que, confesso, eu não gostava muito: tio João era exigente e
antipático, rapidinho abandonei a natação. Tudo bem! Agora, é só retomar as aulas. Volto para a natação com o Coach Silvio. Vou arrasar, afinal, tenho bom condicionamento, já corro e pedalo bem, fôlego é comigo mesma. Doce ilusão. Não consigo nadar nem 25 m sem parar para recuperar o fôlego.
Sem problemas! Sou resiliente e assim como na corrida e na bicicleta, invisto dedicação total na natação e depois de um bom tempo, até que já estou nadando bem, considerando-se a minha realidade, já consigo acompanhar todos os treinos. Que bom! Agora posso finalmente partir para a minha primeira prova de triathlon, pois já treino há algum tempo. Meu coração bate acelerado só de me imaginar numa prova que sempre desejei.
Marinheira de primeira viagem, não podia faltar nada, comprei tudo que me indicaram: roupa de borracha, bicicleta de carbono, tênis com tecnologia avançada, e lá vou eu. Acordo excitada, tomo o café da manhã, coloco a roupa de competição, por cima visto minha roupa de borracha e caminho rumo à
largada, mãos geladas de excitação, coração acelerado, hoje será meu grande dia, meu dia de estreia numa prova de triathlon.
É dada a largada, ouço o som alto da buzina e quando olho para o mar, para aquela imensidão, aquelas águas todas sem raias desenhadas no chão, sem perspectiva nenhuma de enxergar o fundo, a sensação agradável e entusiasmada, vai se transformando num pânico crescente, ainda tento lutar contra ele, controlá-lo, mas meu corpo fica congelado, não consigo respirar, não consigo pensar, acho que vou morrer, será que já morri?
Começo a rever o filme da minha vida, as pessoas vão nadando e passando por cima de mim, não aguento mais, desespero, tenho que sair daqui, tenho três filhos, levanto a mão e peço socorro, antes que seja tarde. Sou resgatada e a sensação de alívio inunda-me. Ufa! Estou viva, estou tremendo, estou sentada na areia, estou ao lado da minha família: não quero mais sair daqui, nunca mais.
O momento do alívio passa, e no lugar dele, a decepção, o questionamento, a tristeza por ter desistido. Como é que é? Posso simplesmente deixar que o pavor do mar me tire o sonho de ser triatleta?
Posso! Qual é o problema de simplesmente não competir, de passar o resto da minha vida treinando corrida, bike e natação, mas fazendo provas só de duathlon (bicicleta e corrida)?
Ora, os problemas são muitos, e o maior deles é que essa escolha faz de mim uma zumbi, uma morta-viva. Começo então a ver que o triathlon é uma metáfora da minha vida; deixa de ser um esporte e torna-se o meu amigo de todos os dias, o meu grande mestre. Olho para a imensidão do mar e comparo com a imensidão dos meus sonhos, com o vasto universo que tenho pela frente, e com o tamanho dos meus medos.
Medo de me entregar àquelas águas, de me entregar à vida, de perder o controle enfim, medo de descobrir o novo e de explorar o mundo. Tomando consciência do que está acontecendo no meu mar interno, posso ressignificá-lo. Assim, aquela sensação que tanto me apavorava começou a tornar-se libertadora. Meus pulmões parecem ter dobrado de tamanho e, como tenho mais ar, começo a me sentir mais livre e a olhar para o mar gigante e para a natação como a etapa que me conecta ao triathlon, como a etapa do nascimento do sonho na qual posso primeiro engatinhar, depois andar, explorar e conectar-me comigo mesma.
Na minha trajetória de triatleta comecei a treinar em águas abertas, dia após dia, repetindo o mesmo movimento e a mesma sensação de entrega ao sonho que não controlo e vou confirmando que toda a materialidade que construímos está nos nossos pensamentos e, então, basta criar novas sensações e repeti-las várias vezes para que se tornem parte do nosso novo modus operandi.
A bike e a corrida continuam fazendo parte desta jornada que é a vida, uma com a insistência longa do dia a dia e a outra com a garra de jamais desistir, de retirar força até o último momento. E, assim como a nossa vida não é fragmentada, o triathlon não é a junção de três esportes: é um só esporte com várias facetas e momentos. Sim, fragmentos e unidade!
Hoje, quando faço uma prova de triathlon sinto o frio na barriga na hora da largada, o coração que bate forte, e a excitação tomando conta de mim e, como num passe de mágica, ao entrar no silêncio do mar, sinto-me calma, tranquila, desbravando um novo universo.
Galah Dymetman Sanz




Cacilopes, muito obrigada pelo comentário e fico feliz que tenha gostado do texto.
Adorei, delícia de leitura ! Além da boa escrita, muito inspiradora!