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ADOLESCÊNCIA E COACHING

  • Cartografias Subjetivas
  • 17 de abr.
  • 6 min de leitura

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E então sobrevivemos, pero no mucho, à pandemia. Não sabíamos se haviam terminado, ou não, os novos medos e hábitos de viver sob constante ameaça e isolamento, em quase reclusão, durante as semanas e os meses intermináveis em que aprendemos a confundir público e privado, dentro e fora, relações afetivas e protocolares, enfim o home e o office. Íamos sim, aos poucos, retornando a um novo normal. Um normal anormal. Normal dos sobreviventes século 21, ao preço do esvaziamento de nossas almas. Sem entusiasmo, sem curiosidade, sem criatividade, vivendo numa espécie de marasmo, desnutridos, apáticos, prostrados e, felizmente, protegidos daquele vírus e de outros tantos que virão. Nos livramos do fator infeccioso e não nos livramos da forma esvaziada que aprendemos a viver por causa dele. Será mesmo por causa dele?

Em meio ao marasmo e à apatia generalizados eis que, depois de dois anos, surge um novo streaming, “ADOLESCÊNCIA” - a Série -, com tudo para ser invisível e inexpressiva como todas as outras séries que, despejadas de forma delicada em nossas múltiplas telas, como sacos de lixo tombados no meio da estrada, despejam os sofrimentos infinitamente reproduzidos por moços emasculados e moças frígidas, com menos episódios do que as maçantes longas temporadas, e mais do que os filmes de um episódio só, poluindo e escancarando uma torrente de significados que vão se agrupando, se ajeitando e se combinando, transformando o lixo previsível em luxo surpreendente abrindo, cada vez mais, frestas por onde vazam espaços e interpretações interessantes e suculentos. E é então que, de todas as partes e em todos os continentes brota uma miríade de análises, discussões, confissões e até mesmo falas poéticas e patéticas, por que não, sobre o filme. Cada vez mais vozes deixam-se ouvir. O planeta parece, finalmente ter despertado de sua arrastada sonolência desde o Covid ameaçador.

Nasce uma linguagem universal, com vocábulos e afetos próprios que se repetem, se especializam e se espalham. Um burburinho começa a substituir o silêncio dos tempos pós pandemia. Inicia-se uma espécie de frisson da comunicação, com postagens, artigos e grupos de discussão que se multiplicam, e palcos que vão sendo invadidos por alguns atores centrais que até aqui permaneciam em silêncio protocolar, e que agora começam a se expressar e a se expor. São escolas, famílias, instituições e militâncias de todo tipo, críticas às redes sociais e sua penetração não controlada no cotidiano dos jovens, o que aos poucos vai se configurando como urgências da vida, do cuidar, do proteger, do controlar e enfim, do vigiar os jovens. A Série, em menos de uma semana colocou na pauta das falas responsáveis - por vezes assustadas e por vezes num tom seguro e pedagógico -, um único tema: os jovens. Os jovens e a indiferença a eles. Os Jovens! E, mais uma vez, claro, os jovens. 

A profusão de publicações e manifestações em torno da Série só começou a se tornar um pouco menos insistente e incansavelmente presente quando teve início, a menos de um mês depois do lançamento dela, o maior surto planetário desde a Segunda Grande Guerra, há 80 anos atrás, provocado e promovido pela presidência dos Estados Unidos. Só assim a questão em torno da urgência do “vigiar e punir” dos jovens, que continua em alta, perdeu a sua absoluta centralidade.

Ao diminuir o ritmo acelerado e urgente das reflexões sobre a adolescência, pela primeira vez ficou claro que, para além da multiplicidade de caminhos que ela propõe, um de seus maiores atributos foi o interesse e a quantidade de reações que provocou. O mundo todo, independente de categoria determinada, desde lá atrás, ainda nos tempos que antecederam a Covid, estava discutindo e questionando a até agora dimensão evitada, a subjetividade.

Afinal, de quem é a culpa do que acontece ao longo da Série? Sobre qual figura do adolescente pesa a inevitabilidade do assassinato da colega?

A do ensandecido pela menina feitiço que vai-e-volta, vira-e-desvira, torce-e-alisa, afaga-e-repudia? Ou a do rejeitado pelo pai, homem forte da fala grossa, da mão de obra pesada, do futebol ousado? Ou ainda a do sugado pela rede invisível no território virtual e isolado do seu quarto, aonde chegam as gentes, as armas, os desafetos e as vinganças?

O adolescente não entende que a acusação contra ele é de assassinato. Está convencido e não se dá conta de que embora a tenha esfaqueado até a morte, não a matou. Durante a terapia fica claro que ele não percebe, não presta contas, não sabe que ela está morta, nem que não poderá nunca mais falar com ela. Não entrou em contato com a morte da colega, como se tudo tivesse acontecido virtualmente, e não dentro de uma fôrma tridimensional, concreta, objetiva. A doçura da expressão dele, seu trato delicado com a terapeuta, os sorrisos que chegam a roçar o romântico e o sensual, são de repente transmutados pela bipolaridade do afetuoso para o brutal extremo. E seu desagrado vai ainda mais fundo, bem mais, até o auge da violência que explode no seu grito desesperado, exigindo, implorando à terapeuta, que o aprecie, que goste dele. Só isso.

É só isso, tão pouco, e mesmo assim, nem isso. Nem sequer. O desencontro entre ele e a terapeuta finalmente coloca a dor que a sua violência expressa ao esfaquear a colega e avançar em fúria sobre a terapeuta. É preciso em um mundo desmaterializado, de ‘con-tatos’ cada vez mais ‘sem-tatos’, relações sem vínculos e sem continuidade. Perdemos o sentido de nós mesmos, é preciso criar formas de rematerialização. Esfaquear, matar, violar.

A morte da colega e o rugir de trovão balançando as estruturas, formas pelas quais se pode, talvez, despertar, sentir ou arfar um resquício de vida. Matou a colega para se nascer vivo, existente. Rugiu à terapeuta, para se sentir materializado, para aquém da imaginação, fora do quarto solitário com imitações de viventes, avatares, que se virtualizam a perder de vista, ops, com a vista perdida...

Crime perpetrado e não perpetrado. Esfaqueou-a até a morte e ela não morreu.

A insistência em não ter matado encontra eco e aliança no pai, que torce para que o filho esteja dizendo a verdade, e que tudo seja clareado no tribunal, por evidências concretas. Esta espera pela verdade misturada à esperança da inocência do filho acalmam o pai que o apoia e visita com assiduidade na prisão, agora um espaço seguro até o julgamento. É só o pai que está calmo?

A esperança do veredito de inocência é realimentada a cada dia, seja em casa, pelo pai, pela mãe e pela irmã do adolescente, seja com o próprio tratamento da prisão que o incentiva a continuar desenhando, facilitando acesso a materiais e conhecimentos, dando-lhe assim condições para continuidade ao menos parcial, de seu desenvolvimento.

A família esteve relativamente tranquila ao longo dos meses que faltavam para o julgamento e para, finalmente chegar ao fim do sofrimento, sobretudo do pai que, embora feliz pela proximidade da data, está sempre tenso, por conta do que ainda pode resultar. A alguns dias do julgamento, no aniversário do pai, chega por correio um belíssimo retrato, feito pelo filho na prisão, acompanhado de um cartão de parabéns. Não poderia haver evidência mais tranquilizadora do estado sóbrio e equilibrado do filho, não é mesmo? Entusiasmado pela promessa do fim da sua suposta culpa em relação à criação do filho, o pai sente-se reconhecido e acolhido na sua “boa paternidade”. Livre de culpa. A vida pode recomeçar.

Não se trata mais de um crime perpetrado e não perpetrado.

O julgamento já batendo à porta, também para o filho, tendo enviado ao pai o que lhe era de direito, retorna à procura de ainda uma última chance para tentar se materializar. A possibilidade que lhe resta, agora aliviado por ter, de alguma maneira, tranquilizado o pai, sabe que a solução para ele é encontrar algo que possa fazer, que jamais teria feito por ser uma atitude prática e não uma verdade, já quem não houve assassinato. Agora tem o pai ao seu lado e o bom tratamento da prisão e, mesmo assim, ou talvez, por isso mesmo, sofre.

Os meses passaram, o julgamento se aproximava, o pai foi lidando, à medida da necessidade, com a ansiedade por uma culpa que aflige aos pais que temem não terem sido bons pais, e que o tempo todo se desdobram e se retorcem para acreditar que o filho é inocente. (E ele é. Será mesmo?).

Assim, a inocência libera o pai da culpa de ter criado um assassino. Ao longo da Série, a torcida. É sua última chance e ele parte para ela. Em meio à família pai, mãe e irmã entusiasmados com o aparente progresso do filho demonstrado pelo desenho e pelo cartão de aniversário, estão os três juntos, quando o telefone toca, é uma chamada da prisão, o filho com mais um presente para o pai, e ao mesmo tempo presenteando-se a si mesmo.

Para o pai, o compartilhamento de sua decisão. É a primeira vez no filme que o filho comunica algo ao pai, além da ladainha “não fui eu”. Para si mesmo, finalmente encontrou o quê fazer para de fato ganhar concretude, um lugar ao Sol neste mundo de puras luzes ilusórias. Comunica ao pai que vai mudar seu depoimento e se declarar culpado daquilo que sempre negou.

Nesta dádiva tão imensa ao pai, como um ser totalmente existente e concreto, ele afirma a verdade no mundo de um crime não perpetrado, perpetrado. O filho continua preso, julgado e condenado, enquanto o pai, mata-o virtualmente, entrando no quarto do menino e enterrando-o ali mesmo, na cama como túmulo, chorando e vivendo o luto pelo filho que ele matou e que não morreu. Ou será o enterro e o luto do filho que morreu e que ele não matou?

 
 
 

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