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Revisitando conflitos internos

  • Cartografias Subjetivas
  • 9 de jun. de 2020
  • 4 min de leitura

Jogo das Percepções Invertidas”, dizia a folha em minhas mãos.


Há tempos eu e a Annie tentávamos marcar um horário para falar sobre isso, então decidimos conversar naquela tarde “por acaso”, e como acredito em sincronicidades, senti que aquele era o melhor momento para fazer o exercício que ela me propunha como cobaia.


Sim, cobaia. Porque meu cliente contratou a Annie para realizar uma palestra no evento dele, e eu precisava explicar como seria o tal jogo, que provoca a Transmediação de Conflitos. E lá fomos nós: Encontrei uma sala vazia e sentei numa poltrona confortável para ligar para a Annie. O que eu não sabia, era que os minutos seguintes seriam bem desconfortáveis para o meu ego.


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Ah, mas o desconforto não viria de uma vez só, seria aos poucos... posso dizer que em 3 passos.


1° passo: Escolha uma situação de conflito que já viveu com alguém que lhe incomoda, preocupa ou provoca sentimentos como raiva, medo ou tristeza.


Fiz uma lista.


Ao dizer em voz alta quem era o alvo do meu conflito e como a selecionei em meio a tantas opções, percebi que aquela pessoa era a única que eu realmente ainda guardava alguma mágoa, ressentimento ou tristeza, devido uma situação mal resolvida no trabalho.


Annie: “Mas porque conflitos resolvidos estavam na prateleira dos não resolvidos?” – nesta primeira pergunta já senti que a conversa era mais profunda do que eu imaginava.


Percebi que colocar aquelas pessoas na lista de possíveis conflitos, era a forma que eu ainda contava essa história para mim mesma – das pendências da minha vida social. Porém já passou, aprendi tudo o que precisava com aquelas situações e segui adiante. Só de racionalizar isso já notei o quanto a gente pode se enganar e sofrer por coisas que não deixamos ir completamente.


2° passo: Preencha as lacunas da frase abaixo, montando uma narrativa que provavelmente já lhe é familiar…


O que você sente (ex. Não gosto, fico brava/confusa) com (sujeito) porque (o que essa pessoa fez)

Minha frase ficou mais ou menos assim:


Eu me decepcionei com Maria porque ela é fria.


Considere “Maria” um nome fictício, afinal não quero gerar conflito do que já se resolveu dentro de mim.

Olhei para aquela frase e para todas as palavras colocadas naquela ordem, como uma aluna tentando achar o sujeito/verbo/predicado na aula de Português. Acho que pressenti o que viria.


3° passo: Annie me pede para tentar INVERTER a ordem da frase, mudando o SENTIDO, mas usando as mesmas palavras.


Volto a olhar para a frase, buscando alguma outra forma de dizê-la mas não encontro. Permaneço minutos infinitos com a Annie aguardando ao telefone, até que finalmente digo, em um tom que nem eu me convenceria:


Eu NÃO me decepcionei com Maria porque ela é fria.

Eu NÃO me decepcionei com Maria porque ela é fria???

As palavras quase não saem da minha boca.


Annie: “Sentiu sua resistência? Como essa frase soa pra você?”

Uma grande mentira! Eu ainda estou decepcionada com ela! Não posso negar o que sinto.


Annie: “Tudo bem, tente outras formas de combinação.

O quê? Já foi difícil mudar a primeira, imagine agora…


Apesar da minha resistência em continuar, faço um esforço gigantesco para procurar outras formas e dizeres:


Eu me decepcionei com Maria porque ela NÃO é fria.

Essa versão não fez efeito em mim, já que ainda acho que ela é fria.


Eu me decepcionei com Maria NÃO porque ela é fria.

Também não funcionou, pois para fazer sentido eu teria que incluir mais palavras.


Maria se decepcionou comigo porque eu sou fria.

Opa,essa história começou a ficar estranha, do que eu estou falando?


Annie insiste que eu crie novas combinações, até que finalmente as palavras saem, quase que como uma confissão:


Eu me decepcionei comigo porque eu sou fria.


De alguma maneira que eu não sei explicar, memórias surgem me dizendo que Maria não tem nada a ver com a história que eu tenho contado.


Me lembro da época da escola, quando um amigo escreveu uma carta – hábito na época para demonstrar amizade – dizendo que me conhecia bem, e que apesar do meu jeito “frio”, ele sabia que por trás disso existia uma menina alegre.


Annie me ajuda a perceber a realidade da última combinação de palavras, como um limpador de para-brisa em meio a chuva forte, abrindo caminho para que eu possa seguir adiante e ver além da minha própria visão embaçada. Coberta por crenças, medos e percepções distorcidas.


Quando me incomodo com o outro, posso estar projetando nele algo que não suporto em mim. Quem é fria? Maria não estava sendo fria, estava sendo ela mesma, eu queria que ela fosse outra pessoa – talvez eu, assim redimiria minha própria culpa em não aceitar que via nela o que detestava em mim.


Revisito a história e tudo que aconteceu, e percebo que se eu estivesse no lugar dela naquele momento eu também teria que ter algum grau de “frieza”, pois era uma relação de trabalho e não deixa de ser um contrato – algo que se inicia, e se termina.


Entendo que minha relação com ela terminou como deveria terminar, da melhor forma possível naquele momento – não havia outro momento – e términos são sempre términos. Nem sempre conseguimos trazer a alegria de um começo. Há de se respeitar a dor, tristeza e decepção por trás do fim, afinal, nele também está parte de cada um de nós.


Depois de verbalizar tudo que imaginei e contei pra mim mesma por um ano inteiro, percebo que o conflito se dissolve em minhas mãos, palavras e lágrimas, com um choro engasgado de frases não ditas, discussões não discutidas, e pensamentos não compartilhados.

Sensação de alívio. Enfim, tudo se vai. Conto para Annie que naquela exata manhã, eu soube que o lugar no qual Maria trabalhava fechou as portas. Ela me lembra que não foi só o lugar, mas algo também se fechava em mim.


Como quando limpamos a casa para nos mudar, jogamos o lixo fora, guardamos apenas o que é útil e trancamos a porta. Está resolvido.


Minha percepção mudou, porque eu me permiti ver a situação de um lugar novo, dentro de mim, como um espelho mágico que diz pra gente mesmo: “O que você tem aqui pra resolver?”


Thaís Gurgel

25 de maio de 2020



 
 
 

3 comentários


thais.gurgel
17 de jun. de 2020

Obrigada, fico feliz que tenha gostado e se identificado com o texto!

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cacilopes
11 de jun. de 2020

Adorei. Como leitora, me inseri na experiência!

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cacilopes
11 de jun. de 2020

Adorei. Como leitora, me inseri na experiência!

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