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Quais cores moram em você?

  • Cartografias Subjetivas
  • 11 de jun. de 2020
  • 5 min de leitura

A noite cai sobre as montanhas de Poços de Caldas e leva as cores do dia para dormir. As estrelas acordam pouco a pouco junto do brilho da lua cheia e aos poucos a vista do apartamento fica resumida a muito espaço escuro e pontos de luz pelo céu e pela altura do que é cidade.


Você já sentiu como se tivesse se perdido de si mesmo(a)? Como se você mesmo, seu próprio ser, fosse aos poucos sumindo em algum escuro estranho, mas de forma tão prolongada que quase imperceptível. Quando você se dá conta, você se esvaiu. É ausência de ser, de energia vital, de força de vontade, de alegria de viver. Você já se sentiu assim?


Durante minha infância fui uma criança alegre - e falante e perguntadeira, como boa geminiana. Meus pais contam que minha fase dos porquês foi terrível...dou risada: até hoje não parei de perguntar os porquês da vida. Mas houve um momento da minha vida que aos poucos isso foi sumindo e alguma tristeza foi tomando espaço, cada vez mais espaço, no meu ser.


Tristeza, frustração, angústia, dúvidas, medos, paranoias...por alguma razão essas coisas foram ganhando espaço dentro de mim e minha vista interna começou a se tornar como a noite por aqui: muito espaço escuro. Eu já não sabia mais pra onde correr ou por onde caminhar para me encontrar, nem por fora e nem por dentro.


Um dia, voltando da faculdade para casa, sentada no ônibus, olhei pela janela com um olhar sem força e vi o mundo completamente cinza. Tudo. As ruas, os carros, as pessoas, o céu, os postes, as casas, os muros, as fachadas...nada brilhava, nada tinha cor, nada acendia o meu coração para o mundo. Eu estava apática. Onde estavam as cores?


Sabe, as cores, elas precisam da luz para existir, e embora a noite seja mesmo muito escura, o céu ainda tem seus lumiares. Foi então que surgiu uma faísca. Algo acendeu dentro de mim e disse em tom de estranhamento:

- Isso não parece normal. Isso não é vida. Onde estão as cores?

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Quando a chama interna se apaga, qual fonte luminosa dá cor à vida? Nesse dia que eu percebi e entendi: realmente, isso não é normal. Eu estava deprimida. Foi na ausência de cores, na ausência de emoção, na ausência de força, vitalidade, na ausência de ser, na ausência de vida que entendi.


Hoje entendo que viver tem dentro de si uma força de perceber e sentir o movimento da vida, que é fluido e se envolve e se desenlaça naturalmente. Nós, feitos em matéria majoritariamente de água, podemos encontrar caminhos como os rios: um rio que deixa de fluir, que não possui movimento, é um rio sem vida, é um rio sem espaço para vida prosperar. E naquele momento eu notei que eu era um rio morrendo, não me envolvia nem me afetava com nada. Eu não entendia a importância ou a razão da vida e, pior, não fazia a menor ideia do que fazer para dar algum significado para aquela existência que se apresentava para mim em densidades incompreensíveis.

Eu precisava de ajuda para abrir meus próprios caminhos de novo.


Sem muita demora, encontrei uma psicóloga que me ajudou muito e um psiquiatra que me tratou com a urgência que era necessária para mim. Aos poucos fui retomando ânimo, voltando a dormir bem e levantar da cama pelas manhãs. Até que naquele natal, uma amiga muito querida me presenteou com um pequeno livro de colorir mandalas. Quando recebi aquele presente tão diferente de tudo o que já tinha ganhado na vida, não soube o que fazer com aquilo. Eu nunca fui de colorir. Até ali, era uma negação nas artes plásticas e nem ao menos tinha lápis de cor ou giz de cera ou qualquer coisa para colorir aquele livro. O presente ficou na minha estante até que em algum lugar do tempo eu entendi: abrindo aquele livro eu poderia abrir de novo o processo criativo da minha própria vida - e as cores estava pedindo para voltar. As cores estavam pedindo para manifestar a vida e vice versa.


O que eu fiz: peguei aquele livro e pedi que pessoas importantes da minha vida, amigas e amigos, escolhessem cada um, uma mandala, um desenho único para cada um. O que eu pintava: as cores que meu olhos captavam de cada uma delas e deles. Pintei minha bisavó, muitas amigas e amigos que amo, pintei uma paixão, pintei os amigos daquele pôr do sol em uma viagem que fiz sozinha pelos caminhos do Estado de São Paulo que levam até o mar, pintei Dandara, pintei Amyr Klink e tudo o que suas histórias com o Paratii 2 significaram para mim, pintei aqueles que, durante o meu redescobrimento de mim mesma, participaram com suas próprias cores, inspirando minha luz. A única regra declarada era que eu não tinha prazo para entregar - algumas até hoje não pintei.


Todas as pessoas tiveram suas mandalas entregues em mãos, até o Amyr Klink que abordei depois de uma palestra para entregar e acho que ele não entendeu muito bem do que se tratava aquilo. Mas, com estranhamento, aceitou. Quem escolheu a mandala que pintei foi a Marina, sua esposa.


O que eu entendi com esse processo: a gente precisa saber pedir e aceitar ajuda. Por que às vezes a gente precisa mesmo; olhar, ouvir e perceber os outros cria conexões que dão vontade de viver, é maravilhoso quando podemos nos mostrar como somos e quando também criamos espaço para que os outros possam ser quem eles verdadeiramente são; as cores da vida são lindas, mesmo os cinzas; alegria mora em saber ver o mundo com alegria, com cores, com conexões, com diálogos, está em olhar para o céu, está em saber, como disse Matilde Campilho, que “a luz ainda está conosco”; aprendi a me escutar e buscar me escutar cada vez melhor, descobri a Comunicação Não-Violenta e comecei a compreender melhor o que eu precisava para ser feliz e, ao mesmo tempo, comecei a estudar mais o budismo tibetano e entendi que eu não precisava de mais nada para ser feliz, eu só precisava SER, atenta e conscientemente, com todas as minhas cores.


Claro, a terapia e o tratamento medicamentoso foram fundamentais, sem eles eu não teria dado os meus primeiros passos de volta para mim mesma, mas quando tive alta, eu descobri que minha felicidade só depende de mim...e essa foi a mais maravilhosa liberdade que já senti. Todo o processo levou cerca de 4 anos, 1 ano de tratamento psiquiátrico, 3 anos de terapia - e desde a minha alta já são 4 anos de vida vivida. Em algum momento após o processo todo de recolorir minha vida me peguei andando com alegria pela rua de noite. As luzes que brilhavam eram dentro do meu coração - e elas eram lindas em mandalas.


Maria Luiza Soci Rehder


 
 
 

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