O sentir no novo normal
- Cartografias Subjetivas
- 22 de jul. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 23 de jul. de 2020
Começa um novo ano. Chega 2020 para aqueles que seguem o calendário gregoriano e, junto, uma esperança de que tudo pode ser novo, de que nós podemos ser, agir, estar, viver de uma nova forma, nos reinventarmos.
Não dá pra dizer que o ano não cumpriu o que todo “ano novo” promete, estamos realmente nos reinventando. O mundo capitalista se movimenta e reajusta: os grandes, médios e pequenos negócios descobrindo novas práticas, dinâmicas e formatos para seus negócios continuarem dando certo no cenário de distanciamento social. O desemprego batendo recordes e reinventando a vida de muita gente que já sobrevivia com menos do que o necessário. Quem está sem casa, vivendo novas dificuldades dentro de uma vida já cheia delas.
No Brasil, chacoalhões diários nos noticiários. Vertigem e enjoos. Quase não dá pra acompanhar. As entranhas andam precisando se reinventar. Nervos de aço à flor da pele, é o que temos precisado todos os dias para não despencar em desespero com as atrocidades políticas que testemunhamos.
Passamos dos 80.000. Mortos. Caiu a bomba em Nagasaki. “Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”, uma nação que parece ter se esquecido de como sentir. Como viver o luto por 80.000 quando o “líder” da nação declara “E daí? Lamento. Quer que eu faça o que?”. A insensibilidade no poder. É tenebroso. O sentir está precisando se reinventar.
Minha quarentena começou junto de uma mudança de estado, no sentido geográfico da palavra. 2020 começou em Minas Gerais para mim. Uma nova vida, um sonho virando real. “De vez em quando vamos a São Paulo visitar a família”. Era o nosso plano. Começo de fevereiro conseguimos entrar na estrada, descobrindo as paisagens novas do Sul de Minas e dos novos caminhos pelo Nordeste de SP. Na volta, mala cheia de coisas ainda por trazer. Algumas ainda ficaram.
No carnaval também deu tempo, fomos visitar família no interior de SP e voltamos para MG com a família visitando a gente na nova vida pela primeira vez. Como é gostosa a sensação de receber alguém pela primeira vez depois de mudanças.
Depois disso, não deu mais. As fronteiras da cidade fecharam, os ônibus não fazem mais a rota que liga nós e nossas famílias e meu irmão mais novo já deve ter crescido tanto que eu vou tomar um susto quando conseguir vê-lo de novo. Que saudade da minha família. Que saudade da estrada, do mar, de conhecer a cidade nova onde eu vivo. Desde que a pandemia começou, os caminhos são sempre os mesmos: mercado, casa. E a entrada da trilha da saudade vai ficando cada vez mais perto da porta da nossa casa. Nós, exilados em nossas próprias vidas e dias - que já se perdem na conta - sentindo do lado de dentro do lar, quase em silêncio.
Como a gente faz pra sentir e alcançar o outro quando um mundo pandêmico se interpõe nas nossas relações? Como a gente faz para o nosso sentimento possa alcançar quem está longe demais? Nós, que também temos apenas duas mãos. As chamadas ou videochamadas já não dão conta mais do tanto que tem por trás de um sorriso ou de uma lágrima. O sentir é um rio que deságua no mar do sentimento do mundo e o ar que eu respiro hoje se chama saudade. A minha, a sua, as nossas saudades.

Saudade que não tem meio de transporte pra me levar até dentro dos abraços todos que eu quero dar. Vão ficando guardados por dentro, olhando o horizonte das distâncias que não podem ser transpostas. Como fazer o sentir atravessar? Bem, eu já disse: o sentir está precisando se reinventar e dar conta de ficar vivo de longe, dar conta de quebrar a brutalidade e a insensibilidade que rondam nossa nação, dar conta de ainda ter voz nem que seja para dar um único grito apenas que explique que viver e sentir andam juntos. Quando um existe, o outro também. Se um morre o outro também. Você ainda é capaz de sentir?
Quanto de saudade mora em você? Quanto de tristeza? Quanto de alegria? E alívio? Quanto de amor? Quanto de luto? Quanto de medo? Quanto de raiva? Você está sentindo? Você está deixando a emoção vir? Se puder me manda uma notícia boa, mas se não der, só me escreve dizendo o que tá sentindo. Assim quem sabe a gente não sai da nossa própria casa e, apenas com nossas duas mãos, abraça o sentimento do mundo.
Maria Luiza Soci Rehder




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