top of page

O que me faz feliz na quarentena...

  • Cartografias Subjetivas
  • 13 de ago. de 2020
  • 4 min de leitura

... cheiro de roupa limpa no varal, aroma de cebola refogando no fogão, meu pijama de flanela com pizza e Netflix. Toda vez que penso nisso, automático, o cérebro me alerta: Paula, ou você pirou, ou está com deprê. Qual das Paulas é a certa? Qual Paula devo escutar? Passei semanas inconformada com a satisfação que tudo isso me dava, louça lavada e pia limpa, banheiro desinfetado com cheiro de lavanda. Logo eu? Workaholic, feminista, agora sou "do lar"????? Estou doente!


E foi a hora da gota d'água: trabalhando e digitando loucamente no computador, numa dessas tardes que parecem todas iguais desde que a pandemia começou, de repente, recebi um e-mail que me deixou muito irritada! Levantei e fui fumar - não adiantou. Tentei me acalmar deslizando pelas redes sociais, o que só me deixou ainda mais estressada, com as notícias e as pessoas furando o isolamento (enquanto eu, aqui, obrigada a lavar minha própria roupa - e a adorar isso, o que me deixava mais nervosa). Olhei para a pia suja e não pensei duas vezes: larguei trabalho, e-mails, contratos e lá fui eu, lavar a louça às 15h.



E eis que Felipe pergunta: tá fazendo o que aí? Tá sem trabalho, é? respondo: não, tô desanuviando a mente! Reage à minha resposta com olhar de estranhamento, mas sabe que tentar entender seria complexo, muito complexo, e ele desiste. Terminei de lavar a louça e senti a paz interior do "dever cumprido", a mesmíssima sensação de quando entrego projetos e contratos para o cliente. Nessa hora tive certeza: pirei! Lembrei ter lido uma reportagem sobre hábitos de limpeza, dizendo que a mania é sintoma de ansiedade e de desejo de controle. Seria esse o meu caso? Pode ser! Não encaixava muito comigo, nunca tive mania de limpeza, nunca fui assim; o "autodiagnóstico" fazia sentido só em parte; faltava ainda alguma coisa, alguma explicação a mais. Voltei pro "escritório" (que também é mesa do café, do almoço, da janta e, ao mesmo tempo, palco de diversas negociações, reestruturações, contratos milionários videoconferências com CEOs, CFOs etc), e percebi que eu já tinha me acalmado.


Nesse dia tive um grande "insight": ok, o novo "hábito de limpeza" poderia até ser, em parte, sintoma de ansiedade mas se o fosse, é porque a minha relação com a casa mudara. Naquele momento, ao ouvir-me dizer a mim mesma que minha relação com a casa tinha mudado, outro pensamento em seguida surgiu: como assim, "mudou"? "Mudou o quê"? E eu, tenho uma casa? Foi então que, pasmem, pois pasmo eu, pela primeira em vez em 2 anos, desde que me mudei, "descobri" que eu tinha uma casa! Eu, que há 2 anos havia achado o apto e me mudara às pressas para adequar-me ao novo trabalho, apelidava minha casa de "dormitório", pois foi só em plena pandemia que fiz a mudança e, embora more aqui há 2 anos, mudei pra cá somente esta semana, em meio à pandemia.


Dei-me conta, então, que o "novo hábito de lavar a louça às 15h da tarde antes de começar um contrato urgente era, sim, meu novo jeito de acalmar minha ansiedade, e não só por minha necessidade de controle (ou não apenas por ela), mas também porque esta casa é a minha, e eu preocupo-me com ela, cuido dela; é ela que representa e me lembra, todos os dias, o palcos dos feitos e das realizações maravilhosas de que sou capaz (feitos grandiosos, como compras de grandes empresas negociando valores milionários, assim como o ponto perfeito do brigadeiro de panela - mas essa já é uma outra história).


Na verdade, eu estava certa, minha relação com a casa não havia mudado, pois nos últimos 2 anos, ela não existia e, portanto, não poderia ter mudado. A relação apenas havia começado. Por vezes, tinha até a impressão de que a airfryer e a sanduicheira estavam sorrindo pra mim em forma de agradecimento por eu tê-las tirado do armário, limpado o pó do tanto de tempo que estiveram guardadas e esquecidas. Elas estavam me agradecendo por eu tê-las notado e dado a elas uma função tão importante: alimentam-me todos os dias.


Foi aí que, num sábado, lavando o chão da cozinha, pá, travei as costas. De repente, dor na lombar. Fiquei furiosa comigo mesma: ora, eu tinha acabado de começar a namorar minha casa, descobrir cada cantinho que ela tinha, suas coisas belas e suas imperfeições, e estava tão feliz com essas descobertas, como eu poderia estar sentindo dor, já que dor é sinal de que algo não está legal! Mas estava legal! Foi aí que entendi o porque fiquei furiosa, não era com a dor, mas sim porque a dor me "lembrou" de que eu tinha um "corpo" e que o corpo também é minha casa, e eu não estava cuidando bem dele.


Como assim eu tenho um corpo? E como assim ele tem limites ???? Foi quando surgiu talvez uma das perguntas mais ameaçadoras: qual era a minha relação com essa minha "segunda casa"? Meu deus, será que também era inexistente? Foi tão assustador pensar nisso que decidi esquecer o assunto. E assim, um dia, fumando (mais) um cigarro na varanda, entendi que a resposta estava na pergunta: como eu poderia ter algum tipo de relação saudável com meu corpo se eu mesma considerava-o "a segunda casa" e não a primeira? Foi dolorido perceber tudo isso, mas também foi libertador. Cheguei à conclusão de que não só as panelas, potes, copos precisam sair do armário e sacudir as teias de aranha. Eu também preciso sair do armário! O desafio agora, assim como quando estamos fazendo faxina, é conseguir enxergar cada pedacinho, encarar cada teia de aranha formada nos lugares esquecidos (sejam eles a unha, as costas, os sentimentos...).


Ainda estou trilhando este caminho, faxina não é fácil e, assim como aprendi com as faxinas do chão e do banheiro, não dá pra fazer tudo sozinha e nem tudo num dia só. Cada dia uma parte, tirando a poeira debaixo do tapete, encarando os monstros que podemos encontrar esquecidos debaixo da cama (ou boas surpresas - dia desses, encontrei meu par de meias preferido limpando debaixo da cama...e eu que pensava que a máquina de lavar o tivesse engolido - me senti como se tivesse achado dinheiro perdido no bolso da calça, sabe?), jogando fora (ou doando) roupas, potes, padrões e métodos, preconceitos, sentimentos, percepções que não nos servem mais...Ufa! Cansei por hoje! A lombar já voltou a doer, mas tudo bem!


Amanhã retomamos com a limpeza dos outros cômodos.

E você, já saiu do armário hoje?


Paula Alegretti

 
 
 

Comments


  • Instagram - Black Circle
  • Facebook - Black Circle

©2020 por Cartografias da Subjetividade. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page