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Estar sem pele: os ciclos da pandemia.

  • Cartografias Subjetivas
  • 1 de mar. de 2021
  • 3 min de leitura

Na noite do dia 26 de dezembro de 2020 tive um ataque de coceiras nas costas, nos braços e nas pernas, que mal consegui dormir. Tínhamos ido descansar e manter o isolamento numa casa ecológica no meio da mata numa praia pouco frequentada. Mais do que estranhar a cama, senti um coçar como se estivesse trocando de pele.


Passei o ano de 2020 em carne viva. A realidade ao redor estava tão ameaçadora: a ação conjunta do coronavírus e do presidente da república arrancaram toda a minha pele. “Coisa de marica”. É o tempo todo a promoção da destruição e da insegurança: a limitação do salário mínimo, a aposentadoria impossível, o fim do programa de moradia popular, os cortes no bolsa família, a falta de crédito à agricultura familiar, o desmonte da proteção aos indígenas, as queimadas e os desmatamentos criminosos, a renda emergencial saída a muito custo e limitada, as tentativas de liberação das armas de fogo, o poder das milícias crescendo, as “rachadinhas” descaradas, os elogios à tortura e aos torturadores, as milhares de mortes pela covid-19 que poderiam ser evitadas, as mortes sem velório, os enterros feitos às pressas e os lutos pouco vividos, mortes e mortes e mortes, as piadas sobre a vacina, o espezinhar sobre a liberação de recursos para a vacinação em massa e as aglomerações promovidas pelo presidente. E eu que sou sensível demais? Senti cada um destes ataques na própria carne, sem pele para amortecer. Estar em carne viva é aflitivo porque até o vento batendo pode doer, não precisa de cortes para sangrar e, sem a proteção da pele, os ataques batem e grudam. Ah, Gregor Samsa, meu parente distante. Mas, não quero ser engolido pelos ressentimentos.



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Perder o sentido do tato aumentou a vulnerabilidade que beirava me provocar uma doença qualquer. Como se tal poder estivesse totalmente nas nossas mãos. Lembrei-me de uma forte amiga que um dia me disse que criou seu câncer. Entrei no isolamento social decidido a não me deixar abater. Vou sair mais forte dessa, afirmei para mim. A maior exposição de ter ficado sem pele nesse longo e intenso ano de 2020 esteve associada à decisão de não me derreter fácil, pois me comovo diante de qualquer cena da miséria humana. O ataque de coceiras, como virada de ciclo, veio para assinalar o nascimento da nova pele, mais grossa, mais calejada e não menos empática. Pensei na versão sobre Iansã, relatada por Pierre Verger, de que ela aparece como um búfalo e se despe desta pele, como uma roupa, esconde-a junto com o par de chifres num formigueiro e sai andando como uma linda mulher. Nada como ter um couro para nos proteger, chifres para atacar quando precisar e a beleza para servir de espelho aos outros. Mais terrena, a minha troca de pele culminou com a notícia, no dia 31 de dezembro, de que uma jovem conhecida se matara. Toda a água represada veio à tona. Tinha segurado diante das tragédias nacionais e globais, mas, perante o trágico desfecho do drama existencial daquela querida moça, desaguei por todas as mortes do ano. Não me importou escolher a cor da minha nova pele porque tenho certeza de que lado estou, das maiorias. Estar sem pele, carne viva, “virar jacaré”, casa orgânica? Acho que o chá não aliviou meu fígado.

Como não se trata de autocomiseração, este trecho da música Amarelo, do Emicida, é certeiro:


Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes Que nem devia tá aqui Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós? Alvos passeando por aí Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência É roubar o pouco de bom que vivi Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir”

 
 
 

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