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O botecão dos ‘amigão’

  • Cartografias Subjetivas
  • 3 de nov. de 2020
  • 4 min de leitura

Olá,


O texto de hoje sai no dia de meu aniversário e quem me conhece sabe que eu não trabalho nesse dia, portanto, meu eu-lírico titular está de férias, dando oportunidade ao substituto de aparecer mais uma vez aqui no blog.

A estória a seguir é do reencontro de grandes amigos. Giovanni, nosso protagonista, que tem a oportunidade de encontrar com seu irmão Giuseppe e seu primo Gabriel.

Era uma tarde ensolarada de primavera, o céu começava a alaranjar, com aquelas cores únicas que o pôr do sol produz. O brouhaha (alvoroço, ruído) cotidiano da rua movimentada pela escola ali do lado, estava ausente: estávamos numa emenda de feriado, as crianças e os adolescentes, aproveitando bem longe dali.

Giovanni, que não teve que ir ao escritório naquele dia, optou por antecipar o trabalho de um processo sob sua guarda, até então o mais importante de sua jovem carreira. Tratava-se de um caso familiar, em que a pressão por sucesso era tremenda, já que o cliente mantinha-se presente em sua vida, 24/7, sem momento algum de folga.

O dia foi uma correria só, quando Giová (como era conhecido) finalmente conseguiu encerrar o que começara pela manhã; olhou para o seu relógio de pulso:

- 17:37... mais de dez horas tentando resolver essa bodega, e só agora chegando em casa, nem vi o dia passar e já está acabando...

Ao fechar a porta de entrada de casa, numa centelha de tempo, ao notar a quietude da rua, lembrou tratar-se de emenda de feriado. Deu uma última olhada para o céu, cerrou a porta, adentrou a casa.

Imediatamente começou a desfazer o personagem sério que costuma “vestir” nos dias de trabalho e, para tanto, como primeiro ato, descalçou os sapatos, trocando-os pelo par das gastas chinelas havaianas.

- Por hoje é só, pessoal – pensou aliviado

E foi tomar seu banho, para depois vestir-se confortavelmente e então, o cansaço bateu no corpo despido da armadura dos dias modernos, despido do terno.

Enquanto banhava-se, seu celular tocou e, após o banho, viu que seu irmão mais novo havia ligado.

Como não se falavam há tempos, ficou preocupado e rapidinho, sem ao menos se secar, retornou a ligação.

- Fala irmão, tá tudo bem por aí? – perguntou preocupado.

- Irmão, onde você tá? Tá fazendo o quê? – indagou seu irmão Giuseppe, em tom serelepe, pimpão e faceiro.

- Pô, Irmão, acabei de chegar em casa! Tava resolvendo umas ‘pendengas’ com o banco que não quis cumprir um ofício; fui despachar com a juíza do caso e ela emitiu outro ofício, ‘pistolando’ com a gerente.

– Desabafou Giová, o peso do cansaço em cada palavra enunciada.

- Esquece isso aí... Chega mais aqui no botecão, estamos eu e o Gabs tomando umas, só chegar!!

Giová pensou: “Ah, por que não?! Como diz o filósofo, fodido por fodido, peço truco” e respondeu ao convite:

- Belê, Irmão, só vou me vestir e tô saindo, meia horinha tô chegando, guenta aí!” – respondeu animado com o reencontro.


Durante o caminho, Giová teve flashes dos tempos longínquos da infância, quando os três jogavam videogame, tocavam e cantavam juntos, Beppinho – apelido de seu irmão mais novo- no violão principal, Giová fazendo a base em outro violão e Gab na percussão. Lembrou de uma das primeiras músicas que ensinou Beppe a tocar no violão “The Passsenger” do Iggy Pop, uma tarde de férias escolares, no escritório dos pais, ainda com aqueles monitores de tubo – verdadeira velharia, comparados aos monitores finíssimos de hoje em dia –, e foi ficando cada vez mais nostálgico.

Esforçou-se por lembrar o motivo pelo qual haviam se afastado. Não achou resposta em lugar algum. Alguns lampejos de memória de aniversários em que se reencontraram, embora o carinho e o amor estivessem sempre presentes, faltava-lhe a sensação de pertencimento, presentes nas memórias da infância, de sentir-se completo ao lado deles e não um estranho no ninho.

O GPS indicava que o destino já estava à 100m e ao dobrar a esquina e vê-los de longe, encheu-se de alegria, como há muito não sentia. Todos os perrengues sumiram – como uma nuvem de poeira - e ao abraçá-los sentiu a mudança na percepção do tempo, da amizade, do pertencimento.

O primeiro a quem abraçou, foi o Gabs. Há muito que não se viam; para Giová foi como se fosse a primeira vez que haviam se encontrado.

- Ô loco, Gabs! Quanto tempo meu véio, como vai essa cabeça?! – brincou Giová com um sorriso que não mais cabia em seu rosto, de tão largo!

- Ah toma no cu, rapá! Como cê tá, sumido?! Tá sumido não só dos rolês, má tá sumido de tamanho, cê tá magro demais, ein Giová?! Tem que comer umas porpeta pra encher esse bucho aí! – respondeu Gabriel, de bate e pronto, afiadíssimo como de costume


Em seguida, Giová e Beppe se abraçaram, um abraço caloroso, apertado, tapas nas costas, afastaram-se, entreolharam-se e, reciprocamente, estapearam-se nos respectivos rostos, tais quais vossos avôs lhes ensinaram.

- E aí, Irmão, como você tá, Belo?” – indagou Beppe

E assim, com essas poucas palavras, o tempo suspendeu, como se o filme da vida fosse pausado, o som ambiente emudeceu, os carros que passavam pela rua estagnaram, nem mesmo Gabs que estava ali do lado apresentava qualquer movimento. E foi aí que Giová viu-se retornando à infância, quando brincavam pelas tardes.

E com isso, o tempo do distanciamento esvaiu-se, tornou-se irrelevante.

A amizade reconfigurou-se a partir daqueles dizeres, ocupou um lugar de segurança, pois até mesmo o tempo foi irrelevante para sua manutenção e, nesse caso, para o seu fortalecimento.

- Melhor agora, irmão. Melhor agora! – respondeu Giová

A conversa fluiu, os vínculos estavam ali, como se o tempo não tivesse passado, como se a amizade estivesse mais forte, Giová estava se sentido vivo, feliz.

Decidiram ir para outro bar.

E depois outro, e outro, ainda.

E na semana seguinte para outro.

E com isso, o encontro foi pedra fundamental no que decidiram denominar como “botecão dos amigão”, um marco físico e virtual dos vínculos de amizade que superam o tempo e a distância, de encontros. E é um espaço acolhedor como o abraço daquele dia, podendo suspender as agonias e desventuras do cotidiano, transmutando-o no porto seguro de uma nova forma de pertencimento.

Querida amizade!


 
 
 

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