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Miguel, o pandêmico

  • Cartografias Subjetivas
  • 3 de ago. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 12 de ago. de 2020

Ele era um Miguel de 12 anos, como todos os outros miguéis. Atento e curioso, ora saltitando saltos espaçosos de pulga gigante, ora com saltinhos curtos de cabrito tenro; por vezes afoito, por outras, preguiçoso. Rueiro, jogava bola, de gude sobretudo, com a meninada do beco. O passatempo malevolente, ligar para a quitanda, fazer um pedido, dar endereço errado, e ficar de moita com a camaradagem toda, rindo ao ver a confusão do quitandeiro e da madame...

A vida boa, no entanto, de surpresa, ainda bem que uma vezinha só, destrambelhou, tropicou e o fez dodói. Um dodoizão bem respeitável, de uruca e ziriquizira nenhuma botar defeito: morgou e amargou uma pneumonia, teve que largar a escola e o beco por seis longos meses. Ficava à janela, febril, vendo a camaradagem batendo figurinha, embocando o gude das bolinhas na buraqueira toda, a meninada mangando os moleques da turma da “zona de lá” que de vez em quando apareciam pra atrapalhar a vida do lado de cá...E ele na janela, perdia todo esse luxo, resmungava ressentido e injustiçado, jurava vingança e, com ela, descobria o primeiro sentido da vida: ficar saudável, extremamente saudável, e para sempre! E, matutava ao olhar pela janela, como garantir saúde eterna? Ora, tornando-se especialista, fazendo faculdade de medicina, virando toubib prendado, apropriando-se do saber, das dicas e dos mistérios da eternidade saudável.

Só que não...

Assim que cruzou os portões da escola de medicina, o saguão foi subitamente invadido por um batalhão de verdadeiros selvagens, armados até os dentes, que iam separando os estudantes em dois grupos: um bem pequeno, os filhos das famílias ricas, para negociá-los por altos resgates e outro, bem mais numeroso que, por serem sem dinheiro, eram descartáveis.

Apesar de não pertencer ao grupo de nababos, Miguel estava tranquilo, pois desde a pneumonia, sabia que a medicina o salvaria e então, deu o golpe: disse aos invasores que aquele era seu último semestre, que era praticamente um recém-doutor. E assim, ele foi o único descartável não descartado, tendo sido durante os longos meses da invasão, o médico dos invasores e o amigo dos riquinhos, poupados da descartabilidade só por conta dos resgates. Um grande golpe, sem dúvida.

Ao final da invasão, Miguel, agora já homem feito, havia finalmente encontrado o derradeiro significado de uma vida: para além da saúde eterna, a indefectível, indestrutível e infalível garantia de sobrevida era ter sempre e cada vez mais o “dinheiro do resgate” disponível. Só assim, sobrevivência garantida!

E lá se foi Miguel viver a vida, construir a casa, criar a família, fazer a diferença e, mais do que tudo, amealhar muito muito mesmo para que, chegado o momento, pudesse continuar garantindo a vida, a casa, a família...E passaram-se os anos, com muito trabalho, muita economia e pouquíssimos gastos frívolos, felizmente sem ameaças à estabilidade e com a bolsa do dinheiro do resgate, cada vez mais cheia e tranquilizadora. Agora, portanto, para confirmar todo o seu planejamento de vida, era só esperar que acontecesse a “sua” invasão, para ele bancar o resgate e sair ileso e triunfal.

Se nos primeiros anos, Miguel festejava a vida que corria sem sobressaltos, sempre muito cuidadoso em investir, guardar e multiplicar o rico dinheirinho do “futuro”, passadas duas décadas, já respirando mais aliviado, aos poucos começou a ensimesmar se já não teria juntado o suficiente para bancar alguma grande ameaça. Quando pensava nisso, sentia-se um pouco ridículo pela possibilidade de seu sacrifício e o de sua família, talvez terem sido desnecessários, afinal, não houvera ameaças nem pedidos de resgate até aqui. Mas logo mudava a estação do pensamento, por não aguentar depois de tanto sacrifício, reconhecer que fora tudo a toa, pois isso esvaziaria o sentido atribuído à maior parte de sua vida...

Chegando a uma idade bem mais avançada, já viúvo e morando sozinho, Miguel tornou-se um obcecado obsessivo em premonições, em catástrofes imaginadas, tsunamis suspeitados e invasões violentas, sempre tentando justificar sua enorme fortuna amealhada para o momento da verdade que nunca chegava. O dinheiro ocupava tanto espaço, que dentro em pouco teria que comprar uma casa maior, só para alojá-lo...

E então, numa última tentativa de resgatar a si mesmo e ao sentido de praticamente toda a sua vida, sempre confiando na medicina e no dinheiro, Miguel deu novamente um golpe, desta vez, de mestre. Fez as malas, pegou seu assistente e zarparam os dois para a China, para o laboratório especializado em pesquisas com animais de pequeno porte há mais de 70 anos, e com eles, finalmente, Miguel negociou sua tão ardentemente desejada invasão privada e exclusiva. Tratava-se de patrocinar um grande projeto experimental, absolutamente controlado, de disseminação, pesquisa, vacina, imunidade e cura de um vírus encontrado em morcegos. Além do patrocínio do projeto, denominado “pandemia do morcego”, Miguel pagou em dinheiro, com muito dinheiro aliás, um amplo programa de distribuição de vacinas no seu país de origem, espécie de contrapartida, pagamento, resgate, pelos dois movimentos contrários que ele originara: a disseminação e o controle da pandemia.

Como geralmente acontece na vida vivida e não na planejada, as coisas e as pessoas costumam fugir ao controle. E foi assim que o mundo inteiro, de uma hora para outra, viu-se numa “guerra sem inimigos”, de todos os lados devastado pelo excesso. Antes das vacinas, das imunidades e das curas, o experimento controlado, excedera-se.

De um lado, excesso de disseminação: infectados, mortos, perdas. De outro, excesso de controle: Miguel encastelado em seu isolamento, cercado de cuidados e cuidadores.

Apesar dos transtornos e dos opróbrios, ao final, Miguel venceu a parada toda: os excessos acabaram. Já não há mais óbitos na cidade, os leitos de hospital e UTI estão meio à deriva, as complicações, só acontecem excepcionalmente e todos os cidadão estão comprovadamente imunizados.

E Miguel, ah, Miguel, o inventor da pandemia, é hoje o único morador da cidade que nunca foi infectado!


Annie Dymetman

 
 
 

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