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Gris e a cor verde

  • Cartografias Subjetivas
  • 25 de jun. de 2020
  • 6 min de leitura

Os lírios só abriram hoje, 6 dias depois. O macarrão quente, o vento gelado, sirvo meu copo com vinho tinto seco enquanto almoço. Lembro do jogo que comecei ontem: GRIS. Um jogo que conta sem nenhuma palavra a história de uma garota que perde sua voz. Ao mesmo tempo, todas as cores do jogo somem e a garota, personagem principal, e o cenário ganham tons e escalas de cinza. Além disso, a garota passa a andar pela tela como se estivesse sem forças, se arrastando.


No primeiro texto-mapa de caminhos internos que escrevi aqui, falei sobre isso, sobre momentos da vida em que a vida perde suas cores. Não poderia ter começado o jogo em momento melhor, além de toda a simbologia do jogo ilustrar de forma linda o que vivi durante meu processo depressivo, justamente após escrever aquele texto, ganhei uma nova visão sobre como perder nossa própria voz faz também a gente perder as cores da vida.


No início, a única coisa que a personagem principal faz além de se arrastar pelo cenário é desabar no chão sem força nenhuma quando você tenta dar qualquer comando a ela como pular, por exemplo. O cenário pelo qual a fraqueza dela se esparrama é um terreno pedregoso por onde a garota desbrava caminhos com grandes escadarias em ruínas e abismos que não se sabe onde vão parar. Depois de um tempo se arrastando pelo cenário, ela passa a caminhar rapidamente e agora é capaz de pular. Como se algo pedisse pressa. Talvez seja a vida.


No meio do trajeto, um ponto de luz. Quem leu meu texto anterior e lembra da minha faísca? Ela encontra um ponto de luz e esse ponto de luz é capaz de se combinar com outros que passam a surgir pelo labirinto vertiginoso e fantástico que é o jogo e, juntos, são capazes de construir pontes. Os pontos de luz se ligam como constelações, como ligações neurais e constróem pontes, novos caminhos. Caramba! A simbologia do jogo é completamente linda. O objetivo do jogo? Recuperar as cores!

A primeira cor que você encontra é o vermelho. E agora explico porque comecei esse texto falando de um jogo de videogame: o vermelho, dentro da minha cartografia, dentre outros significados, é a cor que pinta a raiva. A primeira emoção que voltei a sentir enquanto acordava do meu processo depressivo.

A raiva sempre foi, para mim, a emoção mais difícil de acolher e integrar. Em parte por que a força destrutiva dela me assusta e eu não aprendi a canalizar isso, em parte pois a complacência e o silêncio me garantiram lugares bem mais seguros do que usar essa energia com o tom e intensidade que ela se apresenta dentro de mim. Vermelho vivo, forte, quente. Sempre busquei formas de me acalmar, nunca formas de agir a partir da raiva com consciência, abraçando a potência que ela traz. Como fazer isso? Gritar no travesseiro? Socar a parede? Parece pouco e parece irreal demais. Oras...eu não sinto raiva do travesseiro ou da parede. Sinto raiva de pessoas, reais, com sangue também vermelho correndo em suas veias. Por que parece é tão difícil demonstrar a elas quando sinto raiva?


Hoje mais cedo o sol ainda nem tinha nascido e eu já estava em vertigem. A raiva amanheceu quente dentro de mim sem se explicar e eu - anestesiada para os abusos - deixei ela ficar mais um pouco para escutar o que ela queria me dizer. Vocês também de vez em quando acordam com uma emoção sem qualquer razão para que seja ela ali se apresentando? Dei um beijo de despedida no meu amado que ia trabalhar e deitei de novo, mas não dormi. A raiva se apresentou de forma tão inexplicavelmente firme e inexorável que eu embarquei em visão de túnel rumo a ela. Não tinha outro caminho naquele momento. Eu estava, como a garota do jogo, sem qualquer clara razão viajando pelos mais altos cumes e mais profundos abismos dos inúmeros episódios que vivi onde a raiva se apresentar. Diante de mim e dentro de mim.


O que essa raiva, já antiga, estava querendo me mostrar? O que ela queria me dizer dessa vez? Respirei fundo para colher fôlego e mergulhei. Dali pra frente, abismos depois de abismos. Encontrei a mim mesma em silêncio diante de ofensas, violências, abusos e invasões ao longo da minha vida. Vivi de novo cada grito, cada agressão e cada ofensa, que doíam de novo como na primeira vez. Cada invasão, cada desrespeito, invalidação, cada vez que não fui ouvida...revivi alguns dos meus piores pesadelos e entendi aonde aquela raiva queria me fazer chegar. Ela queria me mostrar aquilo que estava atravancando o caminho dela e represando-a: meu silêncio.


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Cada vez que eu via de novo cada um daqueles episódios, eu sangrava de novo ao mesmo tempo que ganhava, como observadora, uma chance de revisar minha reação: o silêncio. Cada vez que eu via que eu me calava, eu ia mais fundo naqueles abismos que eu não sabia onde parariam. Eram inúmeros episódios...de ofensas e de silêncios. Foi sangrando de novo as mesmas feridas que entendi: a raiva quente dentro de mim fervia sem mais nem menos pois já era muita, ela nunca saiu de dentro de mim quando fui agredida, ofendida, abusada ou violentada, ela ainda estava aí porque não teve vazão. Ao mesmo tempo, percebi também que essa raiva dentro de mim tinha o mesmo tom e intensidade da raiva que saia da boca, do corpo, das mãos e dos olhos dos outros quando era eu que recebia ela em mim. E por que eu aceitava receber ela também, né? Por que eu me ofendia? Talvez isso renda outro texto. Por enquanto o que quero dizer é: entendi que a raiva morava em mim por nunca ter deixado ela sair e também ter entendido que aquele poderia ser um caminho para lidar com os outros. Eureca e lágrimas. Com uma Lua em Câncer, a hora do sentir é sagrada e pede de espaço - e colo. Eu estava sozinha, então dei colo para que eu mesma pudesse chorar. Chorei todas as vezes que continuei conduzindo a minha vida pelo silêncio, pois muitas vezes o silêncio era menos violento para mim do que tentar diálogo. Chorei por tantas vezes que, diante da ofensa e do abuso, me calei por vergonha de incomodar ou fazer um escândalo. Chorei por duvidar de mim, da minha força, da minha inteligência, da minha capacidade de análise e leitura das situações da minha vida, por ter medo de dizer, por ter vergonha de expôr o que sinto e penso. Chorei muito. E deixei essa porta aberta dizendo para mim mesma como um mantra, chorando deitada no meu próprio colo: "Hoje em dia eu tenho espaço seguro para falar.".


Depois, entendi que posso escolher como dar vazão a essa emoção, aliando minha autenticidade e inteligência a ela. A raiva não é uma inimiga e ela pode ser expressada. Talvez eu não vá adotar os caminhos mais violentos ou destrutivos, pelo menos não para as situações mais cotidianas como o vizinho nada cuidadoso, nada discreto e muito barulhento que tenho. Se eu senti vontade de gritar pela varanda e fazer um escândalo para a cidade inteira ouvir a cada madrugada que eu acordava com seus barulhos? Sim. Aliás, foi através desse episódio que encontrei a chave para desvendar a relação entre minha raiva e meu silêncio. Graças, Annie. Mas, claro, eu fiquei em silêncio e procurei uma solução diplomática. Se eu vou gritar pela varanda e fazer um escândalo para a cidade inteira ouvir caso eu acorde mais uma noite com os barulhos dele? Talvez não. Mas certamente vou procurar um caminho para expressar meu incômodo e minha insatisfação de uma forma plena e autêntica.


A gente não pode esquecer disso - eu não posso esquecer disso: da importância de termos espaços seguros para falarmos e elaborarmos nossos desafios internos. Além de, claro, da importância de nos expressarmos e comunicarmos ao outro nossa insatisfação, nossos limites, nossos termos…


Nós temos espaços seguros para acessarmos nossa fragilidade, e é isso que acredito ser este espaço aqui onde este texto agora vive, um espaço seguro para mostrarmos nossos caminhos e jornadas internas. As Cartografias, a Annie, minhas amigas, meu amado...graças a esses espaços seguros consegui abrir essa porta que abri hoje. As minhas portas abertas, as suas, as nossas, as delas e as deles, quando unidas formam os caminhos de um mapa grande, lindo e rico, que nos ajudam a caminhar com menos dificuldade dentro de nós. São como pontos de luz que, unidos, criam pontes. Terminei meu almoço e meu copo de vinho, abri as janelas e deixei o ar entrar para poder escrever. Os lírios abriram só hoje - eu também - e agora perfumam o vento gelado que entra. O tom da tarde muda. Depois de passar pelo vermelho-raiva, a segunda cor que a garota GRIS reencontra é o verde. A cor da cura, a cor da esperança. A jornada segue.


Maria Luiza Soci Rehder


 
 
 

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