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Eu, ela e as leis

  • Cartografias Subjetivas
  • 17 de ago. de 2020
  • 2 min de leitura

Ao entrar na sala, ainda passando pelo umbral, estarreceu: podia ver-se a si mesma, lá no canto esquerdo, estirada sobre a mesa, exposta e escancarada, toda riscada ela, seu doutorado, sua alma, sua vida. 

Ele, por sua vez, falava tanto que impedia-a de ouvir aquela ladainha tão conhecida sobre “os tempos agora são outros”; normal, e até esperado todo o acontecido. Quanto mais ele empregava sutilezas, menos conseguia encobrir a violência de manter tudo aquilo entre as paredes que espremiam-na naquela sala com cada vez menos ar.


E, à guisa de terminar o ato, ele insistiu em reler aquilo que os olhares julgavam ser mais criminoso. Ela ainda debatia-se quando ele chegou mais perto e “pediu": - não conte nada a ninguém. Não vamos deixar que isso se espalhe, pois poderia prejudicá-la ainda mais.


Recompôs-se o quanto pôde, e saiu da sala com o hálito dele impregnando e pressionando seu olfato. A fala dele fizera de sua mente um embrulho, e seu “pedido" de silêncio, colocara-lhe um escafandro. Não resistiu e morreu ali. Deixou seus quadros, seus livros e sua máquina de café como legado aos seus sucessores. Partiu.


Depois que ela morreu, eu voltei para a casa de minha mãe. A mãe, muito doente. E as duas, desestabilizadas, tendo que acertar diferenças entre nós, que o tempo não conseguia dissolver. 


Em meio aos acertos e desacertos entre mãe e filha, por meses convivi com os flashes da cena dela sobre a mesa e o "pedido" dele, por silêncio.  



Fora um momento de muita confusão e muito trabalho analisar até que ponto eu havia contribuído para a violência perpetrada contra ela, e para apurar o que restara de bom. 


A proximidade e as dificuldades no relacionamento com minha mãe, obrigaram-me a retornar à infância, atrás dos fatos que sempre me fizeram tão contida e que me jogavam para dentro do ciclo de vitimização e de estagnação nos momentos ruins da vida.


Poucos meses depois, o mundo e um Brasil descontrolado, tudo e todos tomados pela terrível pandemia que, ao mesmo tempo em que nos mostra que não é possível ter controle de absolutamente nada,  mostra-nos também que é absolutamente possível transformar o que de pior pode nos acontecer.


A pandemia e o trauma que experimentei fizeram surgir um outro poder sobre o vivido, um poder que eu não conseguia ver antes, por ter ficado muito tempo presa àquela cena de violência sobre a mesa. 


Fiquei por muito tempo presa ao trauma, como se de algum modo eu permanecesse paralisada na cena, no intuito de controlar o que não estava ao meu alcance. Após muito trabalho interno e discussões com uma amiga pandêmica, percebi que teria que sair da cena para alterar seu desfecho.


Ao deixar aquele lugar passivo onde estivera por muito tempo, e cuidar de outros projetos de vida, inclusive a vida desta escrita presente, foi possível dar um novo destino a esse acontecimento. A escrita é sempre transformadora e, mesmo que tentem matá-la, regenera-se.


Hoje, ao mudar o modelo mental de passiva para ativa, vejo que As Leis, a tese de doutorado violentada há um ano atrás naquela mesa, podem ser transformadas em algo poderoso e, atualizá-las, faz parte do poder que posso exercer sobre o meu/eu trauma.


Cacilda Lopes dos Santos

 
 
 

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