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Entre o sonho e o não-sonho: entrar, sair, entrar

  • Cartografias Subjetivas
  • 28 de ago. de 2020
  • 6 min de leitura

Patti Smith? Não, nunca ouvi falar. Como não, perguntavam meus interlocutores tão mais jovens que eu, com um olhar de reverência e quase adoração para quem, como eu, fez parte da geração da contracultura. Como é possível viver a década de 1970 e não saber da deusa? Tinham razão, meu ser essencial, se é que temos essência, engendrara-se ali, naquele então. E mesmo assim, o nome dela não ecoava em mim. Soava mais para Celi Campello do que para Joan Baez. Só bem mais tarde, ao conhece-la ao vivo, 40 anos desde a sua explosão mundial, por ocasião de um lançamento literário seu, descobri porque nunca ouvira falar dela. Mero detalhe: eu era do rock enquanto ela, do punk; antagonistas, portanto. Eram questões político/musicais as que nos distanciavam. Na fricção entre facções, devo ter deliberadamente ignorado a turma do punk.


A recente curta entrevista em que a conheci, foi puro deleite. Misturada e combinada ao público entusiasmado, eu testemunhava sua rebeldia e coragem, hoje repicando não mais a raiva existencial do passado, entrando e saindo do sonho, confundindo o dentro e o fora, apoiada na sabedoria de ser uma longamente vivente. Num reflexo, ela devolvia-me o testemunho de meus idos 20 anos e, de quebra, incentivava-me também à rebeldia e à coragem, justamente no momento de virada em que me encontrava. A punk singer que virou writer, estimulava-me à literatura, a mim, que jamais fui das letras, a não ser como leitora.

Saí do evento, tinindo. A cabeça em volteios, pulando décadas para trás, revivendo minha São Paulo desvairada, flashes de personagens, cenas e cenários tão vívidos que o peito chegava a soar seus alarmes de saudade e falta. Cruzei quase correndo a ponte da Pompéia que me unia e separava dela e do local da entrevista, ansiosa por chegar à minha varanda, montada como sala de escrita, e continuar a debulhar as palavras e os grãos que desde que eu a vira brotavam incessantemente boca e cérebro afora.

Embora ávida como um lobisomem esfomeado, não ataquei o kindle, atrás dos livros dela, nem fui ao youtube ou ao spotify para vê-la, ouvi-la e devorá-la. Não. Adiei. O toque dela fora tão inspirador que eu tinha, on the spot, que cuidar do resgate atávico, do retorno ao eternamente perdido. Eu não chegara 40 anos atrasada ao meu primeiro encontro com ela, não. Ela é que chegou na hora certa para mim. Chegou, quando eu me preparava para celebrar o meu coma. E foi o que eu fiz.

Ah, o coma...


Conclusão de um ciclo demasiado longo e interminável, e antessala de uma aparentemente incrível, inacreditável e inconfiável second life, que me enchia de sabedoria, de reflexão e uma gama de sentimentos a me inundarem, asfixiarem e sufocarem, a não ser que eu desesperadamente encontrasse ou inventasse caminhos para o desafogo.

Até o dia em que, coração e rosto em fogo, cruzei alucinada a ponte da Pompéia, o escrever parecia aliviar um pouco a pressão. Desde o pós-coma, eu sentava na varanda e, numa fisioterapia da alma paralela à do corpo, registrava memórias e alucinações dos tempos da internação. Mas só agora eu entendia que o caminho da ressurreição, mais que alívio, estava não na escrita, e sim no viver uma segunda vida integralmente, e isto só seria possível mergulhando na literaturialidade. Simples assim.


E fui a luta. E à escrita. Aos borbotões e aos borrões as cenas iam se despregando e desabando sobre a tela do computador, em fragmentos, como velhos pedaços de papel de parede descascados. E eu assistia à composição de uma espécie de itinerário que ia se desenhando, em que episódios comatosos, verdadeiras “ilhas”, iam aparecendo e se acoplando naquela imensidão quase oceânica. Era como se a experiência do coma ensinasse a dar sentido à vida, tecendo os fragmentos soltos, fluidos e despencados, num macramê espontâneo. Finalmente eu chegara lá, e podia encerrar minha first life, através da visão da cartografia das minhas ilhas comatosas.

E aí, surpreendentemente, como os grandes momentos históricos, aconteceu a pandemia do amigo/inimigo Corona. Meu texto recém acabado levou-me ao insight: através do vírus, o mundo reverberava, espelhava e ecoava aquela qualidade do contemporâneo absolutamente sem raízes que minha escrita desvendara. A suspensão do mundo, em todas as suas dimensões - do cotidiano à economia, da politica às relações familiares, da segurança aos afetos -, o mundo estava em coma!


E fomos todos (ou quase todos) à luta: a quarentena, o isolamento, o respeito à subjetividade. E assim, no silêncio interno ao qual o mundo externo coagia-nos, pude retomar meu desejo das obras de Patti Smith. Na música, eu já a reconhecia como a intérprete da única obra capaz de complementar a ansiedade romântica da Cavalgada das Valquírias, com a ansiedade contemporânea das batidas e dos coices da funk operaHorses”. Nas caminhadas diárias da quarentena, eu exultada ao ouvir e intercalar as duas ansiedades, tão distintas e tão mesmas...

E sim, o plano era devorá-la também através de seus livres livros. Fui baixando uma a uma as amostras: Just Kids, sua primeira publicação, Devotion, The year of the Monkey, M Train... opa, surpresa! uma das tradutoras, que eu não via há décadas, fora uma personagem importante da minha formação contra cultural! Assim que o nome dela surgiu no catálogo da editora, num átimo, minha São Paulo desvairada ressurgia, desta vez, como o Anjo da História de Walter Benjamin eu, no centro de uma tela enorme, e dos meus dois lados, em vertiginosa velocidade, numa enxurrada, passavam um sem fim de imagens daqueles tempos, num filme em preto e branco, muitas delas perturbadas, todas elas perturbadoras. Eram os anos 1960 liquidificados diante de meus olhos; emocionavam-me. Podia vernos a todos, jovens desbocados e corajosos; éramos muitos e tínhamos um brilho vital no olhar; nós e os ambientes por onde trafegávamos, íamos nos enredando, nossos rizomas aéreos entrelaçando-se, formando um emaranhado que enraizava a nós e às nossas geografias, como se fossemos territórios. Que saudades daquele pertencimento!!!


Primeiro belonging identitário, aquele emaranhado constituíra-me. E ao deixá-lo, pouco depois, por levar-me a vida a outras paragens e outros países, tornou-se também meu primeiro desenraizamento. Corte real, na carne, pela raiz.


Parada na dor da memória daquela perda que ainda hoje dói a dor do exílio do emigrante, espanto-me com a facilidade com que abri mão. Aquele foi o desenraizamento de estreia e, neste sentido, foi único. Numa rápida escaneada, daquelas que a gente dá num flash ou num tapa, percebo que depois daquilo, nunca mais consegui pertencer verdadeiramente. Audaciosa, diria que sempre estive meio que à deriva; dentro, porém fora; derivando, chegando e partindo. Um pouco como Patti, que entra e sai do sonho num movimento indistinto também eu, entro e saio da vida. “Movida pelos cabelos”, é como costumo definir-me.


Dando uma guinada na direção oposta à inicial da escrita do coma e a fluidez que nele eu descobrira, ao reconhecer e acolher esse meu “estar flutuante”, buscava tornar-me enraizada e, quem sabe, resgatar as oportunidades de pertencimento perdidas ao longo do percurso.


De volta ao país há mais de 40 anos, perguntei-me, como podia eu nunca ter buscado reencontrar nenhum dos amigos daquela maravilhosa constelação do passado? Como pode, tanta desconexão? E, mais uma vez, a resposta veio através dela, Patti, agora minha musa, e de sua tradutora-raiz, com a qual casualmente me havia deparado! Mãos à obra: desenterrá-la e, claro, enraizar-me.


O círculo parecia estar completo. Estaria mesmo?

Depois de árduas buscas, consegui localizar a tradutora. Enviei mensagem. A resposta veio imediata, meio desajeitada e meio invasiva, na forma de chamada com câmera. Devagar com o andor, que as relações são de barro... pensei. Tardei dois dias inteiros em responder, desta vez sendo clara no meu desejo de renovar o que quer que tivesse sido deixado para trás. E então, por vez primeira, ela comunicou: “A velhice pegou-me de surpresa... cirurgia cardíaca, de peito aberto... não poder dormir de lado, só de costas”.


Embora ela ainda não soubesse, aquela comunicação estabelecia, definitivamente, o encontro entre nós. Equivalíamo-nos na suspensão da vida, ela com o peito aberto e remoção provisória do coração para “rebout”, eu com o coma; ela, reaprendendo a deitar de lado eu, reaprendendo a andar. Completávamo-nos: ela, ante no retorno da morte eu, veterana, para não deixa-la só no desenraizamento.

Ambas, como a deusa, entrando e saindo do sonho e da vida, num movimento indistinto.


Desenterrar e reenraizar.

Tirar da terra um, repor na terra o Outro.

Tirar da terra um, repor na terra, o Mesmo.


Annie Dymetman

 
 
 

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