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Devaneios citadinos: a vacina contra a Covid 19

  • Cartografias Subjetivas
  • 17 de set. de 2020
  • 3 min de leitura

Em tempos de pandemia, por conta do isolamento social, tive - repetidas vezes – devaneios sobre a cidade de São Paulo, totalmente transformada. Grandes mudanças arquitetônicas em lapsos de tempo de uma noite apenas, sincronia e diacronia confundindo-se; fantasias, desejos de mudança e a cinza realidade se misturando. Os sintomas do coronavírus, febre, tosse seca com dor de garganta e cansaço, embora eu não tivesse ficado doente, o estado de devaneio assemelhava-se aos sintomas. Até sonhei estar sem máscara, em meio a uma aglomeração.

Antecipando-se à possível falta de leitos, a prefeitura reservou quartos de internação de hospitais particulares para os casos graves. Assim, moradores dos cortiços do Bexiga foram internados no famoso hospital privado da região, por ser o mais próximo. Pela primeira vez, os pobres puderam ser tratados naquelas acomodações que só conheciam enquanto funcionários terceirizados da limpeza. No entanto, os médicos, acostumados a tratar de casos graves de câncer, eram os que apanhavam do novo vírus. Do outro lado da cidade, um bilionário do Morumbi foi levado de helicóptero, graças ao seu plano de saúde, para o hospital público do M´Boi Mirim, cuja equipe, treinada a lidar com os estropiados por tiros, conseguia amainar a velocidade de propagação do coronavírus. Pareço estar delirando. Não estou. Manter o distanciamento social faz meu corpo todo doer.

A cidade ia sendo totalmente reformada, acabando com o predomínio dos carros. Como as pessoas passaram a circular de modo mais restrito aos comércios de seus próprios bairros, as calçadas foram alargadas e arborizadas e a fiação, inteiramente aterrada. A rua da Consolação, por exemplo, ficou com calçadas três vezes mais largas, o que incluía as ciclo faixas e a rua, com uma única faixa de carros (afinal, só em casos extremos é que as pessoas saiam de carro) e duas faixas para ônibus, uma para os articulados “expressos” que cruzam a cidade e outra, para os pequenos “locais”. Eram vários os terminais de integração entre “expressos” e “locais” e, com as estações metrô, que finalmente atingiram a cidade inteira. Os ônibus eram novos, limpos, elétricos; a tarifa, 20 centavos (preço simbólico) e tinham a frequência suficiente para todos os passageiros viajarem sentados. Desejos constantes de uma cidade com fluxos mais humanos? Bobagem, todos têm a garganta irritada da poluição e, por vezes, vem a tosse seca independentemente da nova doença.

A padaria próxima de casa virou uma cooperativa dos trabalhadores, que cansaram da exploração dos patrões com a impossibilidade de quarentena e de ter que se deslocar por mais de 20 km por dia para trabalhar. Do outro lado da ponte, foi maior a proliferação de comércios locais geridos pelos moradores das redondezas. As boas condições de vida do centro migraram para as periferias: escolas, hospitais, cinemas, teatros, bibliotecas, parques passaram a ser suficientes nos bairros mais populosos das zonas sul e leste. Afinal, na cidade desigual, a possibilidade de isolamento social foi mais um dos privilégios de quem tem poder aquisitivo para morar nas regiões com mais os recursos urbanos.

No Grajaú, os movimentos de hortas urbanas deram um salto e intensificaram as trocas de sementes e produtos com as aldeias Guarani de Parelheiros. É claro que tal produção não dava para alimentar o bairro inteiro. Porém, tais movimentações estavam articuladas com os produtores orgânicos da cooperativa de agricultores de Parelheiros, que teve sua demanda aumentada devido ao distanciamento social da classe média agroecológica do centro. Ações semelhantes ocorreram com os Guarani do Jaraguá, com a associação dos agricultores orgânicos da zona norte e com o acampamento do MST Irmã Alberta, em Perus. Na zona leste, as hortas urbanas também se multiplicaram com o envolvimento de moradores.

E a moradia? Todos os prédios abandonados do centro foram ocupados, restaurados e passaram a ter condições de infraestrutura seguras. Quanto às ocupações de terrenos nas periferias, algumas seriam urbanizadas e em outras, os moradores seriam levados para prédios novos da prefeitura. O mais interessante foi que os moradores das ocupações dos prédios nas ruas próximas à Praça da Sé, como da rua José Bonifácio, plantaram árvores frutíferas em buracos escavados no meio dos calçadões. Frutas à disposição nas ruas não chegam a matar a fome, mas são símbolos de alimento à mão de todos, e não mais como uma mercadoria. Com tantos devaneios, me protegi do vírus.

Toda obra necessária era feita durante a noite. Então, a cada noite dormida, um novo passo fora dado. Mas, e o povo? Ocupara a prefeitura para tudo isso ocorrer? Sim, a gestão da cidade estava nas mãos da companheirada sem teto, prefeito, já não mais havia, só comissões de trabalho em cada área. Começavam a aparecer os primeiros sinais de declínio da primeira grande fase desta pandemia.

A cidade não seguiu meus devaneios. Mas o mundo, não é mais o mesmo, nem eu.


Marcelo Gomes Justo


 
 
 

1 ความคิดเห็น


elza_mendes
17 ก.ย. 2563

Emocionante...parabéns

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