Despedida e despedindo
- Cartografias Subjetivas
- 10 de nov. de 2020
- 6 min de leitura
Metáfora acertada para o mal d’alma, aquele tratado em terapia, é a do tumor maligno, daquele cujo crescimento não se controla de jeito nenhum. É que mal d’alma, mata. E mata mesmo.
Saí do consultório do terapeuta meio que...empurrada, meio sem entender o que tinha acontecido. Aliás, estou meio aturdida, até agora.
Antes mesmo de chegar ao elevador, olhei a hora no celular e vi, abismada, que a sessão durara meia-hora. Meia-hora só, e eu fora empurrada para fora do encontro, do consultório, e da terapia semanal!
Combinamos - ou foi ele quem decidiu? - que eu passaria a vir a cada duas semanas. Seria um teste, um ensaio para o meu desapego. Ou seria para o nosso mútuo desapego?
Passei o dia tentando recapitular, louca para que tudo fizesse sentido.
Lembrei que na ida, ainda entre o estacionamento e o consultório, eu refletia, como costumo, sobre o tema a ser focado na terapia do dia.
Aquela seria uma sessão importante. Há algumas semanas, crescia em meu peito uma daquelas ondas urgentes como as do mar do Guarujá de minha infância, aquelas de dar um grande salto na relação comigo mesma e, sobretudo, na minha relação com o meu mal d’alma, minha doença. Sentia que era hora de mudar de patamar e aceitar que, no final das contas, dos temores e dos tumores, não só sobrevivi, como aprendi a agarrar a vida na sua plenitude, mesmo quando ela se apresenta como uma ameaça de morte.
A contraparte dessa vitória no entanto, aterroriza-me. Confirmar a própria vida, mergulhar nela por inteiro, apropriar-me dela assim, desperta meu flerte com o diabo, e provoca a surpresa da infelicidade em plena felicidade: “sentir-me sã” – assusto-me falando comigo mesma - “pode ser a forma silenciosa de chamar uma doença de volta”.
E então, ainda a caminho do consultório, dou-me conta de que nas últimas semanas tenho vivido em incontrolável polaridade. Enquanto aproximo-me do prédio e o prédio de mim, o medo engole-me, turva-me as batidas do coração, faz-me literalmente “trepar pelas paredes” para fugir da sensação de impotência e estrangulamento.
Penso e me estrangulo: “amanhã talvez eu acorde com a dor de uma metástase óssea... ou talvez, sem poder me mover... ou talvez...”.
Penso e me alivio: “ainda bem que estou a caminho da terapia... Aliás, foi lá que descobri que a minha impotência (assim como a dos Outros) é ilusão, só ilusão. E também foi lá que saquei que ilusões se dissipam. Sim! Dissipam-se e ... tornam a se reconfigurar e a reaparecer. Então, em vez de lutar a luta perdida de dissipá-la, criei outra ilusão, uma nova camada para sobrepor à anterior, que me deixa mais risonha do que ansiosa: a ilusão da minha potência.
E foi dando sequência a essas meadas que, já no último quarteirão antes do prédio, pintou a metáfora. Minhas iluminações, como coroação, costumam se condensar e se concretizar em metáforas. E, desta vez, a metáfora da minha incontrolável polaridade foi a própria relação terapêutica: afinal, há algumas semanas tenho usado menos a terapia do que minha própria sabedoria interior e meu próprio bom humor para me fortalecer. “É – pensei -, a terapia rendeu muito, e em relativamente pouquíssimo tempo. Um ano... pouco mais que o tempo de uma gestação para me renascer. É, o cara é bom... grande profissa!”
A esta altura, eu já estava no saguão do prédio e, mesmo assim, continuava ruminando. É que a sessão de hoje era importante mesmo, uma virada de curva... o que será que tem depois da curva?
Pela primeira vez foquei nele, no Cristiano, minhas ponderações. Olhei para a tela do celular, faltavam alguns minutos para o atendimento. De qualquer maneira, ele sempre atrasa. Até já me confessou, cínico, que sou a única paciente para cuja sessão ele sempre, sempre atrasa. “E olha que não sou disso, não gosto de atrasar!”. Dessa vez fiquei feliz pelo atraso, pois precisava de mais uns momentos para ter claro sobre o que eu queria trabalhar.
Fiz rápida varredura: “a minha mudança, será que é minha mesmo, ou vem de fora, ou vem dele? Pensando bem, eu sobreviveria sem ele? Ousar pensar em poder viver sem ele, não seria um chamado mudo, mágico e inevitável de retorno da doença?
Lembrei que na semana anterior, por primeira vez, por conta de um compromisso inesperado, eu desmarcara a sessão, o quê, sem dúvida, foi muito significativo, na minha atual condição impotente. Ahá! então eu já havia, de alguma forma, ensaiado uma separaçãozinha...
Ufa, finalmente achei o foco de hoje, ao mesmo tempo em que o elevador chegava ao andar do consultório: trabalhar o medo e a culpa por me sentir saudável, independente e empoderada.
Entrei e fui sentando na sala de espera, preparada para os meus/dele quinze minutos de atraso. Acabara de pegar a xícara de café, e ele já me chamava, surpreendentemente, pontualíssimo!
Ao entrar na sala, percebi que estava com raiva dele. Por que estaria? Pensei: “vou precisar dessa raiva quando propuser pularmos a próxima sessão, para ver(mos) como me sinto “sem ele”. Desta vez será uma falta programada. Brrrr, uma temeridade, segundo minhas repetitivas fantasias, pois pode até custar o retorno da doença. (Já pensou? bem na semana sem terapia, um repentino diagnóstico? Dor, tumor, cirurgia, e sequer tenho terapia marcada!!!?) Será que eu aguento?
É, vou precisar da raiva dele para ter força de vê-lo com menos frequência e, ao mesmo tempo, ter força e não fazer uma metástase...

Deve ser por isso e para isso que estou com raiva dele. Preciso dela.
E aí, lembro que confio nele. E como confio! Inteiramente, independente do que ele faça, independente de sua lealdade... Aliás, é também por isso que tenho raiva dele de vez em quando, em rompantes. É que ele andou me enrolando.
Sim, me enrolou: propôs parceria e, cínico, fez juras de atenção eterna que, aliás, me fez um bem danado. Fico com raiva ao pensar que ele não sente o que disse que sentia, ou que não pretendeu “realmente” a parceria. E pasmo, porque mesmo assim, sei que ele não me traiu.
Não traiu, porque minha confiança nele é incondicional. Ela não depende de nada. Ela é uma escolha, um encaixe, uma adoção. A partir dela entendo que se ele propôs parceria e nunca a realizou, ou se fez juras e delas se esqueceu foi devido ao seu imbatível profissionalismo.
Explico-me: na primeira vez em que fui ao seu consultório, eu estava moribunda. Buscava forças para gerir e viver o fim que eu pensava estar próximo, inevitável, assustador! Assim que me viu, colocou-me sobre uma espécie de suporte - pedestal - e ficou a me olhar, durante curtos/longos quatro meses (ou não foram quatro?), embevecido.
Do que eu mais gostava, era quando ele dizia: “e onde é que você estava?” Como se uma “pessoa como eu” devesse ter aparecido há muito tempo... Eu gostava muito dessa fala por ela me dar a sensação de que eu faço a diferença. Sim, foi seu olhar embevecido que deu força, muita força e, talvez até pour cause, deu-me significado. Não, não ressignificou minha dor, meu medo ou minha culpa, não. Significou, deu significado, sim, a mim. À minha pessoazinha por vezes insignificante. Por conta do olhar dele (foi ele quem fez a diferença, não eu), consegui me ver, depois de muito tempo, significativa.
Foram quatro (?) meses de tratamento tonificador e aí, começaram a estourar pipocas, espoletas e bombinhas: eu tinha que deslocá-lo das primeiras prateleiras em que, por inexperiência, eu o colocara. Sua juventude e leveza, por exemplo, pareciam não combinar com o convívio íntimo e cotidiano da “morte batendo na porta”, ou com sua caretice “essa coisa de república, de morar todo mundo junto, não é comigo não... promíscuo...”. Ou então esse meu herói da impecabilidade, domingo sim, dia não, deixando-se fisgar por falas amargas e irônicas que só no futuro ouviríamos da ministro, ops, ministra Damaris do governo Bolsonaro, perdendo o humor e a compostura, pisando no acelerador em vez do freio e... bum, bateu o carro!
E aí me pego, brava por ele não ser impecável, na contramão da minha confiança incondicional. Estava perigosamente esquecendo que ele é, sim, absolutamente impecável na minha admiração. Se exibiu sua pecabilidade, profissa como ele é, foi para que eu aprendesse a lidar com ela. Com ela e com a minha pecabilidade também, minha vulnerabilidade, minha finitude.
Hoje seria o dia da minha sessão semanal, se não a tivéssemos suspendido. É o momento perfeito para terminar de escrever esta que é minha Primeira Despedida do Cristiano. Pergunto-me: “Por que escrever sobre isso? Qual a necessidade?”
Não sei responder. Fico na dúvida. E começo a repassar tudo de novo, à procura de uma pista. De fato, por que foi tão premente passar a sessão a limpo? Deixei tudo cozinhando na nuca, junto com os novos significados agregados pelo texto, e fui dormir.
Pela manhã, acordei com a resposta. Eu finalmente havia entendido. Precisei escrever e me despedir, para não desistir dele.
Annie Dymetman
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