De volta ao amor de Dali
- Cartografias Subjetivas
- 24 de set. de 2020
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Embora eu estivesse entrando no consultório, nitidamente a sensação era de estar saindo de onde quer que eu tivesse estado. Antes de cruzar a porta e entrar, olhei para trás, meio que de soslaio, para confirmar de onde é mesmo que eu estava saindo? Ah, sim, eu estava saindo da minha vida. Da vida cotidiana, claro. Ou não era só da cotidiana? Explico-me: assim que dei uma varrida d’olhos às minhas costas, esperando rever a saleta de espera do consultório onde eu estivera justamente esperando, por muito tempo aliás, pareceu-me ver, de relance, minha vida não cotidiana e não a sala de espera. Que estranho, pensei, enquanto entrava, enfim, para a minha sessão de terapia em grupo.
Antes mesmo de cruzar a porta por inteiro, subiu-me ao cérebro, sem sequer ter-me atingido as narinas, aquele delicioso cheiro, como se a áspera doçura dos anos 1970, fosse uma madeleine da infância proustiana, transportando-me de volta à rua Barata Ribeiro paulistana, dizem alguns, a precursora da Ville Madeleine brasileira.
Antes mesmo de vê-la, sentada na cadeira de co-terapeuta, lembrei-me do seu nome, Galah. Lembrei também que ela não se chama Galah em homenagem ao espanhol Dali, aquele catalão da bengala de ouro e do bigodão, que trafega entre a genialidade e a loucura, o fascismo e a liberdade. Nada disso. Chama-se Galah, por conta do amor que ele, Dali, tinha pela Gala dele.
Abismou-me vê-la ali, com seu ar inspirador de musa e modelo artístico. O realismo da cena era tal, que pensei ter-me enganado de porta e desembarcado em algum ateliê em pleno furor criativo. Ela ali estava com seu olhar sonhador, que eu conhecia tão bem, como se estivesse sempre a adivinhar e sonhar os sonhos dos outros, mais claramente do que os próprios eles dos sonhos. Eu podia ver-me por trás de suas pestanas que de vez em quando tremulavam, acompanhando algum sorriso provocado por alguma visão do sonhador ou por alguma baforada áspero-doce. O realismo, ele novamente, era tão incisivo, que cheguei a duvidar qual de nós duas era a sonhadora uma, e a outra, a sonhada.
Afastando-me do olhar dela, procurei no círculo das cadeiras, quase todas já ocupadas, um lugar para mim. Eu tentava encontrar o lugar que fosse “meu lugar de sempre”, se é que isto é possível, pois um lugar é sempre um espaço e o sempre nunca é espaço, é apenas tempo, como outro qualquer, com exceção, é claro, do presente. É isso: eu procurava o espaço que fosse o inexistente tempo presente (e talvez, não fosse).

Passei por não poucos obstáculos. Por vezes, localizava o assento perfeito, o assento que agrega significado e, quase a alcançá-lo, deparava-me desgostosa por já ter sido ele ocupado por outrem, certamente mais rápido do que eu, apropriando-se do sentar. Mais que a perda da cadeira, doía a dor que o erro de cálculo e de visão provoca. Em outras tantas, dava-me conta de que não havia mais cadeiras vazias. Estavam todas ocupadas, embora nem sempre por pessoas: ora personas, ora personagens, tudo e todos impediam-me de fazer parte do círculo. A movimentação era muita. Embora um tanto quanto insólito, dava a impressão de que alguns trocavam de lugar aleatoriamente, outros deixavam o recinto de forma inesperada, enquanto outros ainda, que eu jamais vira, entravam em meio à sessão como se a entrada fosse natural, acomodavam-se e participavam tranquilamente das discussões. O jogo e o movimento das cadeiras, das presenças e das saídas fascinavam-me. De vez em quando pensava estar no amplo palco do Teatro Municipal, ou talvez
mesmo no palco da minha vida, em mais uma rodada a minha vida fazendo-se sentir, naquela dança desatinada, a brincar de stop the movement!
Era, na verdade, uma sessão em que tudo parecia inconstante. Altas mobilidades. Altas paralisias. Era o domínio da indeterminação, do descontrole, do fluir. Enfim, era a existência apresentando-se no seu ápice, bem naquele estilozinho de gozo e liberdade dos anos 1970, da Queda da Bastilha psiquiátrica, do início da liquidificação dos costumes, dos protocolos e das margens, da tentativa quântica de ser, da substituição do Muro de Berlim pela nebulosa muralha do cheiro áspero-doce.
E foi exatamente naquele momento de insustentável leveza que, por fim, visualizei “meu lugar de sempre”. Era, de fato, a única ilha em meio àquele agitado oceano de sons e de pensares. E dei-me conta que “meu lugar de sempre” era e seria sempre a cadeira ao lado dela, da co-terapeuta, da Galah que me sonhara e me parira hoje no seu grupo, e que fora sonhada e parida por mim lá na década de 1970, exatamente no ano de 1978.
A sessão terminada, abri a porta da sala e saí. Ao cruzar aquela mesma porta, em vez de passar pela saleta de espera, entrei no meu quarto, aquele na casa onde moro, deitei na minha cama, dei uma última ressonada noturna e acordei. Virei como me viro todas as madrugadas quando acordo de um sonho, acendi o abajur que acendo quando um sonho me acorda. Nesta volta do tempo re-volto, posso por primeira vez em estado de vigília, não só em estado de desejo, justificar teu nome Galah, não em homenagem a Salvador, nem a Dali, nem a quem quer que seja. Nada disso. Teu nome é Galah pelo amor que tenho pela minha Galah.
Annie Dymetman




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