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De mundo cão para mundo sem

  • Cartografias Subjetivas
  • 8 de out. de 2020
  • 3 min de leitura

Um casal sem cartas, isto é o que somos. Abro minhas gavetas, as do escritório primeiro, depois as do armário do quarto, remexo até nas prateleiras da cozinha, à procura delas, e não as encontro. Tento lembrar onde as guardei, e como não lembro, fico imaginando onde poderia tê-las guardado, se realmente tivessem sido escritas, onde? Flashes dos lugares possíveis e dos improváveis rincões, na biblioteca, talvez, entre as páginas de algum livro? Socadas entre as partituras do piano que não tocamos há décadas? Ou simplesmente em algum envelope já amarelado pela saudade do “nós” que havíamos sido os dois, até chegarem as meninas, porque depois delas, éramos muitos. Éramos tantos que chegamos a ser eles e elas, além de sermos nós.

Ameaço reescrever a minha história e o nosso amor. Ameaço alto e bom som: se não achar as cartas, vou escrevê-las, ora pois! Isso mesmo, passarei a fabricá-las, a maquiná-las, a inventá-las. De súbito, em meio a esse transe da procura, desperta-me a curiosidade: e por que será que é tão importante tê-las a ponto de escrevê-las, eu? Só para que existam? E por que seria tão importante elas existirem? Na verdade, elas devem ser um testemunho de nos amarmos. Elas testemunham-nos. Ao nosso amor, um brinde, salud!

Como é possível nem Ele e nem eu termos pensado, lembrado, ou querido registrar e aprisionar o nosso amor num cercadinho de palavras, parecido com aquele do Palácio da Alvorada em Brasília, para garantir a sua permanência? Como é possível? Por que não o fizemos, pergunto-me, meio indignada, meio surpresa com a nossa pequenez de pensamento ou com a nossa vaidosa, onipotente e arrogante certeza de um amor imortal que só por sê-lo, imortalizar-nos-ia por contágio... Os imortais não precisam de registro, muito menos de cartas. Têm a memória eternizada.



Pela milésima vez vasculho o chão, e também aí elas não estão. E então, volto a sentar, e fico sentada, ansiosa, ansiando vê-las, lê-las, tê-las. Tocá-las. Ah, tocadora de harpa, se eu pudesse beijar o teu gesto sem beijar as tuas mãos... É isso, definitivamente, como estamos em tempos pós-pandêmicos, puras virtualidades, vou lê-las mesmo não tendo elas sido escritas, porque estão sim, em algum lugar.

Sempre pensando nelas, depois de eu ter perguntado: “o que é uma obsessão?”. Ele escreveu-me: “não consigo tirar-te da cabeça”. Entendi. Olho para ele e vejo-me, de fato, refletida ali. Nele. O texto que eu procurava obsessivamente parece-me, finalmente, que o encontrei. Agora, é só transcrevê-lo, refletido que está na tela em que ele se tornou.

É maravilhoso ter acompanhado o nascer deste nosso mundo virtual. Melhor, é maravilhoso ter descoberto que o mundo em que sempre, sempre e desde sempre vivíamos, é absolutamente virtual e o que parecia não ser era-o, por ilusório. A segunda metade do século XX e eu, levamos algumas boas e longas décadas desenvolvendo as técnicas da virtualidade. Tempos materiais de desmaterialização. E tudo para terminar nas cinzas da quarta-feira do covide-dezenove, este incrível parceiro da virtualização que acabou dissolvendo no ar, tudo que é/era sólido...

E assim, na virtualidade da tela que ele é, perpetuamos, ele e eu, as nossas vidas. Imortais, juramos como jura de amor, jamais irmos ao enterro um do outro. É o nosso cercadinho de vida. Nossas vidas virtualizadas não só impedem-nos de morrer, como tornam a necessidade de sermos um casal com cartas, totalmente obsoleta.

Dedico este texto à minha amiga Helena, quem cravou o nascimento da des-ilusão do mundo pré-pandêmico, ao denunciar, junto com o menininho da fábula, não só que “o rei está nu” como, com ele, todos nós também estamos. Nos tempos do rei nu, ainda sobrava-nos a pele. Hoje, Helena, amiga, foram-se os tempos do rei nu. Entramos na era dos envelopes de carta vazios.


Annie Dymetman

 
 
 

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