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De jovem a adulto num piscar de olhos

  • Cartografias Subjetivas
  • 19 de out. de 2020
  • 3 min de leitura

O ano é 1942, plena Segunda Guerra Mundial. Estamos em Antuérpia, na Bélgica, recém ocupada pelo exercito alemão, marcando o início do Holocausto.

         Meu pai acaba de receber um telegrama do Alto Comando Alemão, convocando-o a se apresentar, no prazo máximo de 24 horas, na estação central da cidade, para a prestação de serviços obrigatórios, por um período de 6 meses.

          O mesmo telegrama foi enviado a dezenas de milhares de outros judeus belgas. Meus pais decidiram que ele não se apresentaria e que, além disto, ele e eu, então um jovem de 17 anos, sairíamos fugidos da Bélgica, passando pela França, na tentativa de chegar à Suíça ou à Espanha, países neutros e livres, não ocupados pelos alemães.

           Meus pais, portanto, decidiram o meu destino, sem me consultar, sem pedir a minha opinião e eu achei o fato absolutamente normal.

            Meu pai, então contratou um contrabandista para organizar a viagem de fuga. Na manhã seguinte, bem cedinho, os três, meu pai, eu e um amigo, dirigimo-nos ao local combinado para dar início à nossa viagem. No total, seis mulheres e cerca de vinte e cinco crianças pequenas já estava no local, aguardando a chegada do contrabandista que chegou logo depois. Informou-nos que viajaríamos em dois carros, num levando todos os passageiros, as pessoas apenas e, no outro, iriam as bagagens.

      As mulheres não gostaram da ideia mas não tinham alternativa, pois era evidente que as pessoas, deixando o pais, levariam em malas e sacolas, todos os seus bens. Este não era o nosso caso, pois havíamos ocultado as nossas economias nas nossas roupas e nos nossos sapatos.

        Os dois veículos, tendo rodado alguns quilômetros, subitamente, numa curva, deparam-se com quatro policiais alemães, armas prontas para atirar, parecendo estar aguardando-nos.

         “Todo mundo desce!”, foi a ordem que ouvimos repetidamente. Todos descemos, sabendo que havíamos sido traídos, pois o nosso contrabandista pegou o volante do segundo carro, do carro com as malas e, à vista dos policiais, levou as bagagens embora.

           Os guardas nos reuniram e, aos gritos, iam nos empurrando para uma área de vegetação cerrada; entendemos que iam nos fuzilar a todos, pois só estavam interessados nos nossos bens.

            Acenei discretamente em direção ao meu pai e ao nosso amigo para que diminuíssem o passo ao seguirem o grupo de mulheres e crianças que gritavam e choravam alarmados, correndo por todos os lados, não entendendo nada do que esta acontecendo. Os policiais não conseguiam controlar o grupo

          Naquela situação, dei-me conta de que meu pai e até mesmo o nosso amigo estavam completamente  desorientados. Reagindo, disse aos dois: “vou contar até  três e cada um de nós vai correr e se esconder atrás das arvores que estão daquele Lado, mesmo que os guardas atirem, porque temos boas chances de escapar; eles vão dar preferência a pegar as crianças rebeldes e as mães e vão nos largar onde estivermos”.

         Um, dois, três... corremos! Cada um de nós postou-se atrás de uma arvore. Os policiais perceberam, deram alguns tiros, não atingiram ninguém, e talvez nem sequer soubessem onde estávamos; percebiam que as mulheres e as crianças estavam correndo para todos os lados, dispersando-se, fugindo; então, exatamente como eu imaginara, resolveram perseguir e juntar novamente o grupo mais numeroso das crianças e das mães.

       Naquele momento me dei conta de que a relação entre meu pai e eu havia mudado radicalmente: ele estava sem ação no momento crucial e era eu quem dava as ordens, e meu pai quem obedecia; esta situação continuou na sequência da nossa fuga até a chegada numa cidade grande, onde a minha criatividade para conseguir ajuda, permitiu mantermo-nos livres e continuarmos o caminho até a França.

      Num piscar de olhos, por conta da situação imprevista e da necessidade de uma ação imediata e, por meu pai mostrar-se amedrontado, resolvia o impasse. Num momento de perigo superei minha pouca idade e minha condição de filho obediente, tornando-me o lider do meu próprio pai.

Minha juventude tão violenta e repentinamente cerceada tornou-para sempre a presença invisível e dolorosa de um membro decepado. O fantasma do jovem em mim é até hoje, setenta anos depois, meu gêmeo imaginário.


Michel Dymetman

 
 
 

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