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Cenas urbanas II – As violências cotidianas e as maneiras de chamar um indivíduo

  • Cartografias Subjetivas
  • 10 de dez. de 2020
  • 5 min de leitura

A situação descrita ocorreu numa sexta à noite num centro universitário de São Paulo, há alguns anos. Estava próximo à sala dos professores quando ouvi gritos de uma garota. Vi um grupo de seguranças privados da instituição cercando um jovem e ela se metia entre eles berrando desesperada: “Não vão bater nele!”. Diante do tumulto, eu e outra professora nos juntamos ao grupo de estudantes que acompanhavam a cena para evitar excessos, pois estes relataram que os seguranças foram estúpidos no tratamento com o colega. O chefe dos seguranças havia conduzido o estudante até aquela área das coordenações segurando-o pela alça da mochila.

O referido estudante era um típico jovem de uns 20 anos, branco, de classe média, de boné, mochila e skate na mão. Segundo sua versão, estava andando de skate (reconheceu que estava errado) e um segurança lhe chamou a atenção: “Oh, Joe, sabe que não pode andar de skate”. Respondeu que seu nome não era Joe e que não queria ser chamado assim. Perguntado qual era seu nome, negou em dizer. Disse que se sentiu desrespeitado pela forma de tratamento e que, em seguida, outros seguranças foram chegando, deixando-o assustado e os ânimos se exaltaram dos dois lados.

O chefe dos seguranças contou que foi chamado pelos subordinados e que, em casos assim, sua função era retirar a pessoa do meio do tumulto para conversar num lugar calmo, sem a pressão em volta. Segundo ele, o mesmo jovem havia sido advertido uma outra vez por andar de skate. Como esse chefe insistia que precisava levar o estudante para uma área tranquila, este ficou mais assustado e resistente. Então, fui acompanhar. Fomos em direção à entrada da instituição; no caminho, os seguranças nos fitavam quando um deles, baixinho e branco, provocou o jovem ironizando sobre sua valentia. Falei-lhe que o comentário não era condizente com sua função, largando a imparcialidade. Outro segurança também repreendeu o colega. Aproveitei para dizer ao chefe o seguinte: “a parte pedagógica com o jovem cuidamos nós e você deve conversar com seus subordinados sobre a forma como procederam na abordagem”. Assumi, assim, que uma parte dos seguranças tinha abusado.

Após todas as conversas, o jovem e sua amiga me agradeceram e foram embora. Eu e a colega ficamos conversando com o chefe. Nisso, um segurança, negro, se aproximou dizendo que deveria ficar calado porque foi ele quem abordou o garoto. No entanto, relatou a seguinte conversa com o estudante:

Oh, bacana, não pode andar de skate.

Bacana, não - respondeu o jovem.

Oh, amigo.

Amigo, não.

Então, qual é o seu nome?

Não digo.

Então, fica difícil, não posso te chamar de bacana, não posso te chamar de amigo, de querido, nem nada!

Ao lado deste funcionário, um outro colega (aquele que havia provocado o garoto) estava exaltado dizendo que era segurança num banco, que tinha experiência e que mesmo com pouco escolaridade não merecia ser humilhado por um garotão de universidade mal educado.

Com as nuances descritas, as cenas merecem algumas interpretações, lembrando que o proposito dos textos aqui não são de análises científicas. Mas, a minha mente sociológica não se aquieta. Afinal, por que a forma de chamar uma pessoa, que não é um xingamento, pode parecer desrespeitosa? A posição do estudante é a de quem tem o privilégio do homem branco. Tal posição apresenta as marcas de uma sociedade hierárquica em que os membros dos grupos dominantes não aceitam viver a igualdade das regras. Por que chamar de “bacana”, “Joe” ou “amigo” seria ofensivo? Numa sociedade em que vale a frase “você sabe com quem está falando?”, como analisou o antropólogo Roberto da Matta, não predomina a ideia de um indivíduo igual aos outros em direitos e deveres, valem os privilégios. O nosso estudante disse que reconheceu o erro, mas não pode ser “desrespeitado” quando o chamam a atenção. Entre os amigos skatistas, ele provavelmente aceita ser chamado de “mano ou véio”. Não foi à toa que alguns seguranças acusaram o impacto de sua insolência. A questão oscila: não é somente como se chamar um indivíduo, mas quem o chama.

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Divagando um pouco, me lembro quando, nos anos 1980, o linguajar petista de chamar a todos de “companheiro ou companheira” me soou como a possibilidade de, finalmente, estabelecer simetrias entre os distintos indivíduos nas ruas e romper com as hierarquias nos tratamentos interpessoais, como o típico “doutor”. Mas não perdurou, desconsiderei a força dos fatos sociais. Além de companheiro, também gosto muito de Joe porque ressoa em meus ouvidos os riffs da guitarra do Hendrix no clássico Hey, Joe!

Quanto aos seguranças, havia um clima de tensão entre eles com o estudante, algo que beirava a violência física e reativa a um jovem mal-educado e reincidente na contravenção de andar de skate nas áreas de circulação da faculdade. Afinal, o colega que o abordou teria feito de forma amistosa. Novamente, o dilema brasileiro diante das regras impessoais e, no caso, a tentativa de colocar a norma universal como se fosse uma relação pessoal. Além disso, emergiu entre eles certo ressentimento diante de humilhações vividas devido ao abismo social entre quem está na universidade para estudar e quem está para vigiar. Devido à visibilidade e ao local das cenas vistas, a tensão não virou violência física. No entanto, casos parecidos se repetem cotidianamente com desfechos violentos.

Há fortes tensões na nossa sociedade quando os abismos sociais se encontram. Porém, elas explodem quando um dos lados que tem o poder de segurança, seja pública ou privada (que são trabalhadores bem precarizados), está diante de alguém que pode ser colocado como inferior por sua aparência ou cor de pele. Nestes casos, qualquer fagulha é suficiente para ultrapassar a fronteira civilizatória da inviolabilidade dos corpos. Recentemente, assistimos perplexos às cenas de seguranças privados de supermercado em Porto Alegre espancando até a morte João Alberto Silveira Freitas, negro de 40 anos, no dia 19/11/20, véspera do dia da consciência negra. Não se sabe ao certo ainda, mas o estopim teria sido um motivo fútil como o desrespeito a uma funcionária. Extermínio de negros, basta!

Na minha opinião, considero grave as instituições educacionais, com poucas exceções, não assumirem suas responsabilidades. A cena retratada ocorreu no interior de um centro universitário e não virou tema de aulas de modo institucional. Uma questão pedagógica central deveria ser construir relações que rompam com as assimetrias sociais baseadas na linguagem e com as formas de preconceitos e discriminações. Se a instituição escolar não for o lugar de problematizar as hierarquias colocadas pelas linguagens e os, consequentes, jogos de poder, onde será? Eu continuo a insistir nas mudanças pela educação.

Marcelo Gomes Justo


 
 
 

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