Cenas urbanas I – as nossas violências de cada dia
- Cartografias Subjetivas
- 29 de out. de 2020
- 2 min de leitura
A situação que agora revisito aconteceu há mais de dez anos. Tento agora pensar num desfecho. Era um dia de semana, acho que uma quinta, eu andava pelo bairro ao final da tarde. Ao passar pela calçada frente à praça Vila Boim, pedaço gastronômico da classe média alta de Higienópolis, reparo que três homens manobristas uniformizados rodeavam um garoto de aparentemente uns 12 anos sentado no meio fio. Intuindo o óbvio, antevejo-os agredindo a criança: um deles, que estava em pé na rua, chutou-a na barriga, enquanto os outros disfarçavam a cena. Acelero o passo e falo alto:
Por que chutou ele? É só uma criança!
Ele estava aprontando por aqui; está sempre enchendo a gente - me respondeu.
Falei que fazer isso aqui, podia sujar - reagiu um outro.

Em seguida, o garoto saiu, atravessou a rua e desapareceu. Fico uns instantes pensando em dizer algo sobre aquela violência absurda. Nisso, um senhor de cabelos brancos, de óculos e muito bem vestido como todo, ou quase todo, frequentador daqueles restaurantes, se levantou de sua cadeira da mesa na calçada e, cheio de coragem, veio em nossa direção, xingando os manobristas: “seus filhos da puta, monstros, desgraçados, imbecis!” etc. Pensei em contra argumentar ou em talvez unir forças, mas o senhor estava tomado pelo ódio, virou “autoridade” e, aparentemente, a situação havia se convertido em sua causa e na oportunidade de um espetáculo de raiva pública. Aquela violência verbal de um lugar de classe me causou enjoo e resolvi ir embora. O garoto daquela vez, pelo menos, escapou. Fiquei sem saber qual era a maior ou a pior violência: a do chute ou a das assimetrias sociais. Num país como o nosso, as violências podem ser qualificadas e/ou quantificadas.
Revendo essa história com as lentes do presente, continuo a me identificar com o lado mais oprimido, o garoto em situação de rua, mesmo sem tê-lo ouvido: a violência de um chute é execrável, em si. Posteriormente, me coloquei no lugar dos manobristas sendo escorraçados por aquele comensal. A minha intervenção havia protegido o garoto e abriu espaço para a violência verbal. Na minha cabeça, ficou ressoando o comentário de um dos manobristas sobre “fazer isso aqui, podia sujar”. Quer dizer que se fosse numa quebrada qualquer seria possível espancar, à vontade, o “moleque”? O mais difícil foi me identificar com o meu par, o senhor que comia com a família e manifestou toda a sua indignação pelo abuso com uma criança. Também senti ódio do cara que chutou, mas o garoto tinha, naquele momento, se livrado. Meu olhar tende a ver mais proximidade entre os manobristas e o menino e um abismo entre eles e aquele senhor, que assim como eu, pode desfrutar de restaurantes chiques. Os manobristas sabem muito bem que “os burguesinhos” querem comer sossegados, sem incômodos de pedintes, e que não devem descarregar abertamente suas humilhações nos mais fracos naquele lugar. Agora me pergunto: o que o manobrista fez com seu ódio quando chegou em casa naquele dia? Como interromper a escalada dos ciclos de violências do dia-a-dia?




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