As begônias na varanda
- Cartografias Subjetivas
- 19 de ago. de 2020
- 3 min de leitura
Depois de meses e secos pandêmicos, chove na minha cidade. Dia de “Limpar o ar, molhar as plantas e levar tudo o que precisa ir embora.”, como uma amiga disse. O inverno vai chegando ao fim. Já posso sentir o cheiro da primavera no ar. Os girassóis abrem e as begônias, que passaram graciosas pela seca, recebem a chuva com a mesma graça.

Abri a varanda para ver a chuva cair e deixar o cheiro da cidade úmida entrar. Sentei para trabalhar e não sabia o que viria, parecia só mais uma segunda-feira - até que bem produtiva. Sentada na minha cadeira, de repente me vi rasgada de cima a baixo.
Assim como a Renata Sorrah, o que me atravessou dessa forma, foi um poema da Rupi Kaur, “A Casa”, do livro “O que o sol faz com as flores”. Um poema lindo. Sobre estupro. Perdi o chão, o fio da meada e o norte. A lista de afazeres se desintegrou de imediato e fiquei eu sentada na minha cadeira com a água caindo dos olhos do mundo e dos meus. A dor da violência em uma parece doer em todas. Ao menos é como eu sinto quando vejo a sua dor, mulher. Ela imediatamente está também em mim.
Nos noticiários, a criança de 10 anos grávida de seu estuprador. Criança. CRIANÇA. Exposta e violentada de novo e de novo e de novo com os gritos do lado de fora do hospital.
Atravessada. Atropelada duas vezes em um mesmo dia na via de mão única da violência, do abuso. Na via de mão única daqueles que por qualquer razão se pensem autorizados a violar o território ou o corpo de alguém. Via de mão única. Que atropela e atravessa tantas e tantas e tantas e tantas e tantas e tantas mulheres todos os dias. A vontade é de gritar ou chorar, mas ainda queremos falar. A vontade é de dormir até tudo isso passar, mas queremos também acordar. A vontade é de matar ou morrer. Acontece que nós queremos viver - e amar a vida. A chuva virou tempestade. A tempestade virou tornado. A chuva de hoje não é daquelas de levar embora. A chuva de hoje é daquelas de ficar em casa e orar. Não é Água de Beber. As portas do coração não estão todas abertas, pois eu tenho medo, sim. A minha casa não vive aberta, ela tem 3 trancas diferentes, sempre fechadas.
A varanda, contudo, ficou aberta. Para ver e ouvir a chuva cair. Fui caindo junto com ela. Despedaçada, colhi minhas partes caídas e desordenadas no chão quando a chuva passou, dei colo. Ainda não sei o que fazer.
Quando fui fechar a porta da varanda, vi: a chuva molhou as plantas, lavou os cristais e limpou o ar. Respirei fundo e acreditei na vida, mesmo despedaçada. O novo dia ainda é nublado, mas o sol está encontrando brechas. As gotas dão brilho ao amanhã possível. Com a graça das flores que sabem ter graça na seca, na chuva e na tempestade, a gente também floresce, nasce e vive flor. Onde, quando e como quer que seja.
Para quem segue o caminho carregando a esperança mesmo diante de toda a violência, desrespeito e brutalidade, basta ser. E nós somos. Flores. Seres. Brilhantes. A primavera nasce por nós - e o cheiro da estação nova já toca meu rosto.
Maria Luiza Soci Rehder
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