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A metade inteira de duas caras

  • Cartografias Subjetivas
  • 8 de jul. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 12 de ago. de 2020

“Aquela imagem obsessiva no espelho. De novo. E mais uma vez. E outra mais. Como se do fundo dos meus olhos d’alma, vira e mexe a imagem voltava e ainda volta, reaparece e obceca. Por vezes de repente, como se do nada e, por outras, quase ininterruptamente”.

Tudo começou lá atrás, quando Anaïs descobriu a relação múltipla e contraditória entre o espelho e o olhar. Até então, aparência refletida e aparência de fato eram idênticas, diretamente iguais, sem carecer nenhum referencial comparativo. Naquele dia, no entanto, ela descobriu um terceiro elemento na relação entre as aparências, que faria toda a diferença: o olhar.

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E quando é que nos olhamos no espelho? A mulher, por exemplo, pronta para ir a uma festa, numa derradeira olhada no espelho, o olhar que dele sai para avaliá-la, para debruçar-se sobre ela, é o das outras mulheres, com as quais ela competirá. O homem, também, avalia sua imagem no espelho através do olhar das mulheres da festa, às quais pretende seduzir.

E eu, pergunta-se Anaïs quando me olho no espelho? Ao sair, de relance, a um passo da porta, quando vou só até a padaria, à academia, à farmácia ou então, com um certo vagar, quando “me arrumo” para alguma circunstância mais social. Assim, dentro de casa antes de sair ou fora dela, ao olhar-se no espelho, Anaïs olha-se através do olhar daquele Outro a quem ela quer mostrar uma determinada aparência. Avalia-se para os outros. Olha-se no espelho não para o controle de si, e sim para controlar a visão do Outro, para controlar enfim, o Outro. Pensa “de quem é, afinal, o olhar daquele que, de dentro do espelho, olha para o olhador? De quem é o olhar que sai do espelho e que, por sua vez, avalia quem avalia?”

Philip Roth, em súbita percepção de sua identidade judaica, mostrou a duplicação do olhador e do olhado, ao avaliar a própria imagem, a partir de outrem: “dei-me conta...de que minha mãe tinha cara de judia... nesse caso eu, que tão parecido era com ela, também devia ter. E eu não sabia disso!”. Pois é, fora-lhe revelada a identidade pelo reflexo com o qual metade de sua imagem comunicou-se com a metade dela, sua mãe.

A imagem obsessiva do fundo dos olhos d’alma à qual Anaïs se refere, mesmo quando de olhos fechados, lembrada lá no início do texto, aparece de formas variadas. Um rosto (nem sempre o mesmo, nem sempre conhecido) de alguém a se olhar no espelho, metade dele refletido e a outra metade, encoberta – por um véu, uma madeixa ou uma qualquer coisa que permita que apenas metade do rosto se revele e se reflita. A face do espelho, claro, tem um olho só. Uma face inteira percebida apenas pela metade. Geralmente trata-se de uma figura misteriosa, um tanto quanto indecifrável, evidenciando a importância de se ter mais uma metade de um rosto para inferir a emoção, o estado d’alma, a compreensão e, talvez, até a identidade. O olhar que perscruta é atento, curioso e cuidadoso, muitas vezes adivinhando ou inventando a outra metade, mais do que entendendo, ou intuindo mais do que lendo.

Trata-se, portanto, de dois pares de olhos a fazerem avaliações: dois olhos de cá e dois de lá. “E como é possível os meus de lá, se estou cá?” duvida Anaïs. Se duas metades equivalem a um inteiro, quanto perfaz a metade de duas caras? Perfaz duas metades ou um inteiro ou, talvez ainda, um inteiro sim, mas não o mesmo inteiro?

Dia desses, devido ao longo período de isolamento por conta de uma grave pandemia, a do Coronavírus, Anais, aproveitando para colocar as pendências da vida em ordem, decidiu dar um basta, sentou no sofá para pensar, resolvida a não levantar dali enquanto não tivesse decifrado o enigma das duas metades perfazendo, ou não, um inteiro.

E foi rememorando...


*****


Elas, na verdade, eram duas: Anaïs e a outra, Clarice. Apesar de duas aparentemente tão distintas e tão distantes, a identidade que adivinhavam entre si era tão absoluta, que sempre ao se olharem, pensavam-se diante de um espelho espelhando-se, cada uma com metade do rosto encoberto para que a metade do rosto da outra preenchesse o vácuo. Eram portanto duas a se juntarem, a se combinarem e a se comporem e, claro, a se inventarem em uma só. Foi sempre assim, desde que se conheceram, lá atrás, Clarice ainda adolescente e Anaïs, uma mãe de duas, recém enviuvada.

Encantou-se Anaïs na primeira mirada, ao divisar e projetar em Clarice, uma outrora jovem Anaïs, com as mesmas referências de rebeldia: a contracultura, a música de Woodstock e a poesia da beat generation. A menina Clarice, por seu lado encantada, encontrou em Anaïs aquela Clarice que jurava haveria de ser mais tarde, quando a vida lhe requisitasse encarnar um ser que fosse inteiramente seu. Depois do primeiro encontro, lá foram as duas, Clarice pela mão de Anaïs, numa conversação e num bater de pernas sem fim, peripatéticas, num vai-e-vem cômodo e acolhedor para Anaïs, dolorida e ocupada a ondular seu luto familiar, e o deslumbramento da descoberta de um viver para Clarice, expandindo suas dimensões sensíveis e suas escolhas possíveis. E tudo isso, espremido naquele momento de tempo que durou alguns meses, o tempo de uma cintilância talvez e, como tudo que é infinito o é apenas enquanto dura, sequer separaram-se quando, de repente, deixaram de ser, deixaram de se espelhar, cada uma com a exclusividade do seu presente, uma lidando com a vida e a outra, com a morte.

Passados tempos, anos, territórios e vidas, elas reencontraram-se, por um gesto delicado de Clarice que ao longo de toda a separação seguira a trajetória da outra de longe, adivinhando-a, e continuando a papear e a passear – a peripatetizar - com sua Anaïs internalizada, Anaïs “de bolso”. Reencontradas, reconheciam-se novamente distantes e diferentes. Clarice, mãe de duas, agora ela era aquela que jurara encarnar, com a sensibilidade expandida, e experienciando quase todas as escolhas possíveis, atenta e inspiradora Clarice. Já Anaïs, eterna rebelde, agora na idade da sabedoria, reabria velhas cicatrizes e feridas mal curadas, flertando com a ideia de um renascer, embora ainda não tivesse claro por onde começar ou recomeçar.

Logo depois do reencontro as duas metades do espelho, de cada uma, foram se delineando. Clarice foi engolida pelo cruel corredor da viuvez, pelo desapiedado confronto com a morte do amado, enquanto Anaïs, num extremo e tonitruante rugido pela vida, levantou-se trôpega do leito em que estivera por semanas em coma, desejosa de reflorescer, embora não soubesse como.

E foi pela mão de Clarice que, desta vez ela modulando a dor do luto familiar e da recente viuvez, ajudou a explodir os horizontes da Segunda Vida de Anaïs, ofertando-lhe o mundo numa bandeja, através da literatura, dimensão que Clarice construíra no seu ser por inteiro. Foi assim que 30 anos depois, sempre tão igualmente desencaixadas as duas, Clarice e Anaïs voltaram a trocar suas meias caras e a se completarem, exatamente como antes, sempre uma lidando com a morte, e a outra, com a vida, agora invertidas, mais uma vez evidenciando a importância de se ter uma outra metade de um rosto para se poder inferir o significado do rosto.

Se Anaïs foi importante na infância e na vida de Clarice, Clarice o foi na segunda infância e, sobretudo, na Segunda Vida de Anaïs.

E lá estavam elas, na Era do Retorno: ao se olharem, espelhavam-se, cada uma com metade do rosto encoberto para que a metade do rosto da outra preenchesse o vácuo.

Annie Dymetman

 
 
 

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