A criança e o rei nu
- Cartografias Subjetivas
- 21 de out. de 2020
- 4 min de leitura
(Ou 2020: o ano da nudez real)
Muitas vezes sou a criança da fábula que anuncia a nudez real. Esta criança não inventa algo nem é uma brava guerreira disposta a enfrentar os poderosos. Ela é apenas uma criança, ingênua, espontânea, coerente. Na sua criancice anuncia o que vê, espantada.
Nos idos dos anos 90, quando estudava assunto pouco idílico, os linchamentos, percebi que defensores dos direitos humanos demandavam que os incitadores dos linchamentos fossem punidos, sendo a prisão a única punição disponível no arco do Estado democrático de direito. Mas, nós, os defensores dos direitos humanos, sempre fomos os primeiros a denunciar a essência autoritária e violenta das prisões. Espantada com a incoerência, anunciei a volúpia punitiva que tomava conta dos polos opostos da luta política no país: todos conclamando contra a impunidade.
Foi nesta época que encontrei uma turma de pessoas que falavam em abolicionismo penal e me juntei a elas. Para os abolicionistas, que já se organizavam pelo menos desde os anos 60, ser coerente com os direitos humanos é buscar formas coletivas e humanistas de enfrentar os conflitos, exatamente o oposto do que faz o sistema penal e toda sua lógica punitiva. Como toda turma de crianças, não fomos levados a sério pelos adultos. Como assim, acabar com o sistema penal? Quem vai conter a criminalidade? O que faremos com os assassinos, estupradores...? Em resposta, mostramos o evidente: que o sistema penal - com sua força policial, seu ordenamento jurídico, suas medidas repressivas, ameaças e sanções - não só não coíbe a criminalidade e a violência em suas várias formas, como a fomenta, sendo ele mesmo o mantenedor da violência policial seletiva, da corrupção jurídica e do espaço privilegiado para a organização do crime – as prisões. Para nós, as crianças, tudo isso é evidente e espantoso, por isso gritamos.

Mas até a eclosão deste enigmático 2020, parecia que ninguém ouvia as crianças. Até que uma menina espantada com uma cena recorrente nos Estados Unidos, filmou e publicou (ou seria gritou?): quatro policiais brancos matando um senhor negro que, sufocando, implora para viver. O espanto da menina no grito sufocado do senhor parece ter criado o contexto em que finalmente todos enxergam a realidade. E assim o movimento de retirar recursos da polícia ganha força, começa efetivamente a ser implementado em cidades americanas enquanto outras propostas para lidar com os conflitos sociais entram nos debates das eleições presidenciais americanas e reverberam em várias partes do mundo.
Na educação, há também várias décadas, as crianças anunciam espantadas o que vem. Que nas escolas, muitos não aprendem, todos se chateiam e vários adoecem, inclusive os professores. Que os testes, provas, exames não avaliam o que as pessoas sabem, mas o tempo que elas perderam se preparando para eles. Que os conteúdos selecionados para compor os currículos não se parecem nem um pouco com o “conhecimento acumulado da humanidade”, tratando-se bem mais de uma seleção de itens que mantem o mito da superioridade ocidental, branca, judaico-cristã, científica, adultocêntrica, masculina. Que os prédios se parecem com prisões e o sinal que controla a fragmentação do tempo é insuportável.
Na estrutura adultocêntrica ninguém ouvia o grito espantado das crianças. Tudo o que a escola supostamente traz de bom é tão reverenciado que não se pode imaginar a verdadeira civilização sem ela: a democratização do acesso ao conhecimento, o aprendizado da vida coletiva, o convívio com o diferente, o sentido do público. As próprias crianças, quando transformadas em estudantes, deixam de ver o óbvio e passam a associar estar na escola com ser mais inteligentes e assim confirmam as expectativas de seus pais, professores e dos gestores do sistema escolar.
Até que mais uma vez chegou 2020 com seus enigmas e, de um dia para o outro, sem qualquer aviso, suspendeu o funcionamento das escolas no mundo todo. Por meses. De início, a rotina das famílias foi profundamente impactada, tão central era a ida cotidiana dos filhos à escola. Reorganizar as rotinas e evitar a contaminação se tornaram as maiores preocupações de todos. Apesar de as tecnologias digitais já serem há décadas o principal meio de informação e comunicação, as escolas se mantinham imunes a elas e, em consequência, professores e equipes escolares não sabiam como lidar e se relacionar remotamente com seus estudantes. Também não sabiam como lidar com a extrema desigualdade que atravessa nosso país, já que na sala de aula, todos são tratados por igual, desconsiderando (ou seria desinteressando?) as condições em que vivem. Mais importante, no universo escolar, não havia espaço para lidar com os afetos, daí que ninguém tinha apoio para lidar com o pavor disseminado pelo vírus.
Diante de tantas ausências, educadores, estudantes, famílias e comunidades se mobilizaram, organizaram, buscaram conhecimentos, se conectaram. Palavras antes raras entre os agentes escolares ganharam relevância, como vínculo, engajamento, transformação. Daí que passados sete meses, considerando mudanças de fase na pandemia, a pauta da volta às aulas se colocou na mesa. E, estranhamente, as pesquisas mostram que estudantes, professores e famílias de todos os níveis socioeconômicos não querem voltar. Seria medo do vírus? Os defensores do sistema escolar, ameaçados, anunciam que os estudantes estão “perdendo aprendizado”, o que pode, segundo eles, “condenar toda uma geração”. Só resta à criança anunciar a nudez desses reis que parecem pressentir o perigo. Quem perde aprendizado são as pessoas acometidas pela demência. Estariam todos dementes?
Nunca ouvi o que acontece com o rei, a criança, o alfaiate e o povo depois do vexame real. Então, permito-me deixar o lugar da criança para assumir o do narrador da história, e imaginar crianças, jovens, educadores, famílias e comunidades criando as formas de organização coletiva de projetos que emancipam as pessoas e comunidades e constroem um país sem reis, espertalhões, mentiras e covardia.
Helena Singer
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