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Coronavírus ou Comavírus?

  • Cartografias Subjetivas
  • 18 de mai. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 12 de ago. de 2020

São tantas as ocasiões em que vivemos vidas paralelas, nas quais embora não estejamos inteiramente, deixamos que fluam soltas, sem controle, sem nos darmos conta desse movimento que nos move. Vidas paralelas de devaneios ou de vidas emprestadas de narrativas e recontos repetidos, tão reais que beiram a concretude da vida vivida.


E mesmo assim, completamente inesperada, a pandemia Coronavírus desabou no nosso colo, sobre nossas cabeças, eclodindo nossos mundos com ímpeto devastador. Acontecimento coletivo, planetário, o mais importante da vida minha, nossa e de todos, ápice para o qual convergem (quase) todos os significantes e intencionam (quase) todas as justificativas.


Tudo adquiriu a qualidade do suspenso, a meio caminho entre a ilusão de que o mundo voltará a como dantes, ou o controle que não permitirá que qualquer coisa mude. Toda manhã, ao acordar, recordamos que sim, tudo mudou. Mas, para recordar, para trazer a vida para o presente, toda manhã, temos que dar uma vividinha na vida como ela era, uma vividinha faz-de-conta, para só então confirmar que sim, ela não é mais, mudou.


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Mudanças mais, mudanças menos, por conta da suspensão absoluta do absoluto das vidas cotidianas, de seus sistemas e narrativas de sustentação, no nível do real, o irreal terminou adquirindo corporeidade, através do isolamento compulsório e da prisão domiciliar como medidas de sobrevivência e salvação.


Descobrimos então que fomos sugados para fora do cotidiano, para fora da paramount reality e que esta é também uma forma humana de ser, espécie de solidez fluída e fluidez sólida, que denomino estados comatosos. E, na pandemia, o mundo declarou-se e foi declarado em coma. Trata-se da humanidade inteira invadida pelo estado comatoso. Concomitante com a explosão de fora, contrapôs-se uma implosão, o virar-se violentamente para dentro, no resguardo, na quarentena.


Ao iniciar meu isolamento social, ao entrar na gruta defensora de onde provavelmente não sairei nos próximos meses e onde posso ter o privilégio da leveza de viver absolutamente sem atamentos, tive a estranha sensação de um grande oco abrindo-se no meu peito, quase levitando de tão translúcida e diáfana. Lá estava eu sendo tomada por um novo e delicado episódio comatoso, e eu simplesmente parecia respirar melhor.


Naquelas primeiras horas de isolamento epidemiológico pude decifrar o enigma do coma, para mim e para a humanidade, recém agraciadas as duas, pelo impacto apocalíptico do Coronavírus. Estados comatosos desenhando-se como experiência única de escolher ou não, a liberdade da narrativa em vez de um texto algemado, de dissolver as crenças em vez de aferrar-se a elas rigidamente, de deixar derreter e desmanchar-se o mundo, em vez de elogiar lhe a cristalização.


Uma alegria crescente preenchia o espaço dentro do meu peito o que, aliás, nã fazia sentido diante da realidade ameaçadora de aniquilamento que a pandemia insistia ema assombrar. Tudo sem controle. Tudo suspenso. O mundo em suspensão. O tempo em suspensão. Como é possível? É possível? As ruas, as cidades, os países, o sistema, o capital, esfumando-se todos eles, em vertiginosa aceleração, tudo perplexo, descontínuo, e mesmo assim, o mundo e eu numa espécie de continuidade, confirmando que o fim do que havia, o temido fim és ó o fim do sistema, do capital, dos países, das ruas, nada mais. Fim das narrativas construídas em processos civilizatórios longos e penosos, suficientemente legitimadas, esclarecidas, justificadas, criticadas, aperfeiçoadas, fortalecidas enfim, eternizadas. Eternizadas e...então, estamos vivendo o fim do que pensava-se, era sem fim...


E aí, eu entendi.


Daqui de onde escrevo, na ampla varanda com vista generosa sobre grande fatia do centro de São Paulo, em que sou cumprimentada e vigiada por uma infinidade de janelas, como uma miríade de olhos dos edifícios à minha frente, um panóptico às avessas, sobretudo em tempos de isolamento social rígido, esses prédios do meu cotidiano diário terminaram tornando-se parceiros familiares, com os quais por vezes relaciono-me até com certa intimidade, como quando, pensativa, levanto o olhar do texto e perco-me nas ideias e nas palavras enquanto meus olhos divagam pela paisagem por eles habitada, familiarizando-nos cada vez mis, a paisagem e eu.


Paisagem que diariamente expões sua solidez, imponência, majestade e poder, centenas de edifícios com registros de histórias e memórias da própria cidade embutidos, espalhados e desenhados numa geometria quase orgânica, com certeza não mostram traço ou rastro do que eram antes de ser. É porque os edifícios não são construídos como os vemos, não. Eles o são a partir de uma estrutura prévia que não vemos nem sabemos.


Moradores de metrópoles, conhecemos a experiência de uma construção em curso. Com o passar dos meses, diariamente acompanhamos seu desabrochar: fundações, vigas, andaimes, depois paredes, janelas, portas, finalmente o acabamento, exatamente como um inconsciente antes do nascimento, a estrutura do edifício vai desenhando e preenchendo-o aos poucos, como se fora uma gestação, até que lá está o prédio. Pronto, maduro e consciente. Esqueleto e estrutura, não estão mais à vista, foram engolidos. Aqui e ali, um problema hidráulico, uma troca de piso, uma infiltração, e pequenos fragmentos reaparecem durante o conserto. Não tem importância não visualizar a estrutura, porque é sua função ser invisível e sustentar a edificação. Ela é a própria condição de existência do imóvel.


Espelho-me nos edifícios e encontro minha metáfora. O grande espaço que abriu-se no meu peito quando iniciei meu isolamento e me fez eufórica, foi a descoberta de que somos construídos pelas narrativas às quais estivemos e estamos expostos. Espécie de esqueletos ou de estruturas d'alma. Como os edifícios e seus fragmentos revisitados numa pane, também nós revisitamos narrativas embutidas, invisíveis, quando tratamos, por exemplo, de algum trauma, de alguma dor, como se estivéssemos descascando pequenas lascas de nossa subjetividade, o que possibilita entrever fragmentos encobertos da nossa formação originária.


Com o civid-19, a suspensão é estrutural; parece ter suspendido até mesmo a gravidade. O espaço aberto no meu peito reflete o interior da edificação cuja estrutura ruiu. O ferro das vigas de sustentação, desabaram. Nossas narrativas pessoais, a forma individual de ver e estar no mundo tornaram-se vagas, ondulantes, indecisas. A coletividade global teve suas instituições e organizações tornadas vulneráveis, porosas e retraídas. Se externamente, tudo que é sólido desmancha no ar, internamente, tudo que é sólido passou a ser comatoso.

No estado comatoso em que estamos mergulhados, limiar entre vida e morte, indeterminação entre duas realidades, temos a liberdade, melhor, a responsabilidade da reedificação: entre a morte de uma realidade que já não é mais - cujos parâmetros já não se sustentam -, e a pulsão de uma vida paralela, ainda em potência, em que qualquer nova forma e possível.


O coma, expressão radical da escolha entre dor e luto da perda e excitação e enthusiasmo da Segunda Vida, entre os dois metros de separação dos nossos corpos frágeis diante do Coronavírus invisível, e o imenso poder de ressignificação de nossas subjetividades, é um privilégio que não se pode deixar escapar.


Num mundo de estruturas, protocolos e realidades em suspensão, o aprendizado é suspender a própria suspensão e liberar-se, portanto, da ilusão de uma volta ao que era antes, de uma volta ao velho normal.


O pior que pode acontecer com a pandemia, é o mundo não mudar, é nós não mudarmos o mundo.


Annie Dymetman

1 comentário


cacilopes
11 de jun. de 2020

Depois do coma, que sejamos capazes de criar estruturas que nos conecte com o que realmente importa.

Texto ótimo que nos remete às nossas ruínas pandêmicas..

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